Utopia Planitia
- Marco Villarta

- 5 de jun. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 16 de abr. de 2023
Sentar no chão empoeirado e olhar para os altos cumes no limite do horizonte era realmente melhor que se sentir claustrofóbico no interior do laboratório de hidroponia. Eram quase seis da tarde e, no 14º mês, as noites demoravam mais para chegar. As duas luas, brilhantes e enormes, muito baixas no céu aparente, refletiam-se no chão silicado daquele vale.
Não fosse o traje, indispensável, a impressão era que aquela luminosidade deixaria a pele cintilante, quase como um anjo. Se o planeta tivesse oceanos, em vez de lagos pequenos, em crateras profundas, talvez o espetáculo fosse ainda mais grandioso. Não importava. Bastava estar ali. As repetitivas operações com aquelas plantas miúdas e frágeis faziam a pessoa sentir que, naquele planeta, não somente a geografia era erma: o tempo era também um deserto. Estéril e fugaz. Uma ambivalência de escoarem com rapidez inimiga os desafios, enquanto os sucessos pareciam um filme rodando em câmera muito lenta.
Era da terceira geração. Há muito, a colônia havia perdido contato com a Terra. Uma viagem de 48 anos para a primeira tripulação. Além do silêncio reverente dos atuais, das fichas de dados e alguns vídeos semicorrompidos na biblioteca, sabia-se pouco daqueles homens e mulheres que se propuseram a colonizar outro planeta. Outro sistema planetário. Longe da previsível decadência do Sol. Alguns não chegaram. A maioria, com estágios diversos de câncer, apesar da blindagem antirradiotiva da nave, da imersão naquele fluido esverdeado (coisa gosmenta... aff) e da hipotermia a 35°.
O plano de reprodução havia sido bem planejado, felizmente. Dependesse daquela tripulação rota e inflacionada de mutações genéticas, o esforço teria sido inútil. Mas, nas câmaras superprotegidas de embriões congelados, a proteção foi eficiente. Como previsto, nenhum dos corpos dos primeiros teria condição de suportar uma gestação. Toda a segunda geração foi de proveta, sob supervisão da equipe inicial.
A gravidade no planeta era insignificantemente diferente da gravidade terrestre. A pressão atmosférica, a radiação... bem... para isso, os módulos da nave, transformados em laboratórios, área de convivência e oficina dariam conta. Aos poucos, a estrutura de fundição e impressão de materiais foi possibilitando a ampliação das instalações.
Enfim, após 75 anos, havia 248 pessoas, 128 mulheres e 120 homens. Já não havia sobreviventes dos primeiros, mas os segundos ainda estavam quase todos vivos. Das 64 pessoas da segunda geração, 56 ainda continuavam por aqui. A maioria na faixa dos 65 a 70 anos em contagem terrestre, mas 32 a 35 anos no calendário do planeta, já que o ano, aqui, tinha 728 dias.
Havia, sim, muitos arquivos de imagens da Terra. Era engraçado, por exemplo, ver filmes ou fotos das noites terrestres. Apenas uma lua. Grande, mas solitária. A poluição visual da iluminação tecnologicamente precária das cidades ofuscando a visão das estrelas. Os amanheceres eram ainda mais intrigantes, quase melancólicos. A fascinação dos terrestres pelo seu único sol como que aparecendo de dentro do oceano. Pálido e monótono. O oceano era bonito. Aquelas águas que pareciam infinitas e nunca paravam de se mover. Mas o sol... gostava de ter amanheceres, em diferentes momentos do dia, enquanto o terceiro sol, parecia uma estrelinha longínqua, intermitente. Sistema ternário. Três estrelas. Uma azulada, outra avermelhada e outra... somente distante.
A vida era boa. Havia poucas doenças, as tecnologias médicas e, principalmente, as nutricionais, colaboravam para uma expectativa de vida longa: um pouco mais de 100 anos. No calendário do planeta. Algo como 180 ou 190 em anos terrestres. Com um envelhecimento lento e digno. Trabalho intenso, mas com regras de convivência claras e justas. A história da Terra não era animadora quanto à natureza humana, mas os terceiros sempre se perguntavam se ainda eram, realmente, humanos. E, principalmente, se viver em outro planeta, com outras luas, outras estrelas, outro cenário não os teria feito, já, definitivamente diferentes de seus ancestrais terrestres.
Alguns arriscavam a hipótese de que, na colônia, não havia a cultura da presa e do predador que havia fundado o caráter humano em sua trajetória evolutiva. Os semelhantes eram parceiros, membros de uma equipe indispensável para a sobrevivência de cada um e de todos. Não havia, em momento algum, desde o início da vida de cada pessoa, ali, qualquer medo ou insegurança em relação aos outros. As funções eram compartilhadas e com revezamento. Todos tinham que fazer tudo. Cada um tinha ser biólogo, físico, filósofo, linguista, técnico em mecânica, faxineiro e piloto.
Nos diários dos primeiros, via sempre a palavra utopia. Talvez fôssemos isso. Ou não. Não éramos perfeitos. Apenas sabíamos que não tínhamos tempo para a mesquinhez. Custaria as nossas vidas. Se tudo desse certo, levaríamos 10 mil anos para terraformar minimamente o planeta. Trabalhando incansavelmente, geração após geração. Aproximadamente quinhenta. Talvez, depois disso, houvesse riscos. Mas a esperança é que, após tanto tempo, já tenha se estabelecido uma cultura de paz e respeito. Se isso ocorrer, saberemos que, definitivamente, já não seremos mais humanos.
Não há planos para um oceano. Li textos que estimam 2 bilhões de anos para a formação dos oceanos terrestres. Metade evaporação, metade chuva. A química do planeta é diferente. Mais seco. Maior. Não sabemos se funcionaria. De qualquer maneira, o que faríamos nesses bilhões de anos ? Continuaríamos nos reproduzindo e trabalhando, só que dentro de módulos flutuantes ?
Na Terra, as grandes porções de água formaram a vida. Aqui, nos vales poeirentos é que estamos ampliando as sementes de vida que trouxemos. Nós. Nossas plantas. Nossa espécie companheira no reino animal. As galinhas. Ainda dividem o confinamento de alguns dos nossos módulos. Mas sabemos que, um dia, num ambiente terraformado, poderão voar livres. Descendentes distantes das atuais. E haverá mutações. Evoluções bifurcadas. Encruzilhadas embaralhadas. Talvez aqui algo com os répteis surjam a partir das aves e não como aconteceu na Terra. Gosto de pensar nisso. Parece engraçado. Hora de voltar. Fim da gravação.
Marco Villarta
Lavras, 05 de novembro de 2018



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