Folhas
- Marco Villarta

- 30 de ago.
- 4 min de leitura
As finas folhas da janela harmonizavam-se com as secas folhas lá de fora, no território estrangeiro do quintal. A casa antiga tinha vários pequenos quintais e alguns deles davam para lugar nenhum. Em criança eu sempre imaginava transpor a parede que separava cada um daqueles lugares de brincadeiras e de sonhos.
Fechava os olhos e investia a mim mesmo de poderes de super-herói. Ficava invisível, me tornava capaz de atravessar paredes ou de ter visão de raios X. Na prática, eu abria as folhas de madeira da janela, pulava e ia para o outro pedaço de quintal. Com a discrição com que as crianças sabem ter quando praticam suas malas artes.
O adolescente atarefado, o adulto que se foi me ocuparam algumas décadas posteriores. Afortunadamente (ou não) a casa ainda se manteve na família. Foi se esvaziando, é verdade, e ficando sem a alegre algazarra das crianças que lhe povoavam de outros cômodos e de outros espaços.
Quando finalmente voltei, aposentado e doente, já éramos somente eu e ela. Nos lampejos de delírio que me assaltam (ainda bem que, por ora, o que ainda prevalece é a lucidez), converso com ela.
As poucas pessoas que me visitam não entendem por que o alpendre ainda conserva tantas cadeiras de vime, com almofadas estampadas. Sou esperto o bastante para manter o segredo. É que nos finais de tarde de verão ou das meias estações (no inverno me proíbem de ficar exposto ao frio vento que passa por lá) nos sentamos eu e meus tios velhos, que vêm gentilmente de sua morada do outro lado do espelho, e ficamos olhando para a aparente placidez do nada, que nada mais é do que mirar o infinito para além dos cenários e das paisagens. Ficamos em aparente silêncio.
Porque entre dimensões não existe linguagem. Não há palavras, não existe a fluida ou truncada sintaxe de nossas línguas ou complexa fluidez de nossas outras linguagens. Há um sentir que se comunica, que entrelaça as almas em sua instantaneidade. Aliás, a um canto do alpendre vejo, também, todos os nossos bichinhos que se foram. E já que, ao contrário de nossa imediata percepção, não há realmente tristeza na morte, nos damos muito bem. Sei que em breve continuarei com eles, mas em outra condição.
O contato com as paredes é um tanto diferente. Assim como é o contato com os bichinhos e com as plantas. A voz das paredes é uma espécie de zumbido muito fino, muito sutil. No mundo em que agora passei a viver, um orbe de intervalos e de interstícios, tenho pouca habilidade para descrições e explicações. Mas diria que é tudo sinestésico. São zumbidos aveludados, adamascados, e recendem ao cheiro daquele jasmim de cinco pétalas que dá em árvores. Há ainda um odor de fundo que lembra a terra molhada. E é nesse amálgama de sensações que as paredes se fazem compreender. São como gólens, criações humanas, quando nos atrevemos a brincar de sermos deuses.
E como tais, são limitados ao que prescrevemos a eles. Sua existência depende de nossas arquiteturas e de nossas memórias, que se impregnam nos tijolos, na argamassa, nos batentes e lambris, nas cerâmicas e na envelhecida fiação.
Mas se há seres incomparáveis, são as folhas. As folhas mortas, secas. Não são como as plantas vivas, que secretam os mistérios com sutileza e discreta intensidade. Não. As folhas secas são a espera dos pés que as irão fragmentar, crepitá-las umas às outras e apressar seu retorno ao telúrico berçário da mãe terra.
Semana passada percebi que as folhas das janelas se comunicam com as folhas secas do quintal. Não sei se porque as janelas são de madeira, que não deixa de ser também um fóssil das plantas. Talvez os leitores – para quem não faço segredo dessas minhas descobertas existenciais – achem que essa percepção é uma insígnia da lucidez que escorrega nos dias finais da minha longa existência. Não me importa.
Quando me dou conta que estão conversando (o que equivale, muito imprecisamente, a dizer que compartilham instantaneamente o que vivem e o que sentem), tento, mesmo com os lábios endurecidos e ressecados, assobiar baixinho, como que para participar do diálogo.
Minha última descoberta – ontem, no final da tarde – é que tanto as folhas das plantas quanto as folhas das janelas transcendem ao tempo. A sensação de presença (porque, sejamos lúcidos, não há voz, nem signos nem em uma, nem em outra) que cada uma emana é uma espécie de tela ao infinito, com os vários tempos e espaços que ocupam e ocuparam dialogando numa combinatória. Cada momento do tempo em que aquela janela esteve lá se faz presente para as folhas presentes e passadas que já revestiram o chão daqueles quintais.
O que tento escrever hoje – antes que a artrose me negue esse escasso prazer – é se não haverá também nesses diálogos folhas do futuro. E, se posso participar (parece que elas até gostam de mim), quais de mim, passados, presentes – e futuros – est(ar)ão nesse carrossel improvável para a maioria das pessoas para além dessas janelas e desses quintais...
Marco Villarta
Oliveira/MG, 30 de agosto de 2025.



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