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Dádiva

Tenho 74 anos e fui diagnosticado com uma doença senil degenerativa. Meu nome é... Albert, Aberto, Albertino... algo assim. Alguém da equipe médica que me assiste me sugeriu escrever sobre os acontecimentos de minha vida que eu possa achar interessantes ou pitorescos. Podem ser de meu passado remoto ou de meu passado recente. Sobre este último, já não tenho o que dizer ou lembrar. Minha memória recua cada vez mais, mas, nesse recuo, é como a onda da praia que volta com força, puxando a areia. Sempre para trás. Lembrei-me de dois episódios que me intrigaram, mas que havia esquecido. Quando criança, havia na rua em que morava uma casa supostamente mal-assombrada. Apesar das recomendações dos adultos supersticiosos, acabei indo lá uma vez, escondido, matando as aulas do dia. Era uma casa em ruínas e realmente havia muitos ruídos. Um burburinho constante. Hoje penso que não me assustei. Não sei bem. A criança está demasiado distante... Muitos anos depois, já jovem e morando em outra cidade, fui visitar minha mãe. Estava cursando a Universidade nessa época e, nas horas de folga, fazia parte de uma banda musical com alguns amigos. A caminha da casa da minha mãe, passei pelo lote onde só restava um pedaço de parede da antiga casa mal-assombrada. Resolvi me deter alguns minutos e fui ver aquela área, aquela ruína. A desolação era grande. Muito mato, tijolos quebrados e espalhados, cacos de telha e de vidro. Aproximei-me da parede que restava. Ouvi um som, como da outra vez, em criança. Mas não era um burburinho. Era música... Hoje tendo a pensar que aquela casa estava impregnada de música. Não conheço o passado das pessoas que moraram lá. Talvez todas as nossas casas estejam impregnadas de nossas palavras, dos latidos e miados, dos sussurros de amor e dos estertores de quem lá agoniza. Pode ser que minha doença também embaralhe os eventos triviais e crie uma espécie de alucinação da memória. Não sei. Mas gosto de entender assim. Resolver enigmas de vida inteira, ainda que seja pela desavisada fantasia. E me lembro, ainda, dos muitos homeros num conto de Borges, de que já esqueci o título... era algo assim... quando se chega ao fim, já não permanecem as recordações. Só ficam as palavras, despedaçadas, mutiladas. Palavras de outros. Nesse meu crepúsculo da memória e da identidade as palavras outras dos outros que já fui, mesmo que alucinatórias, são uma homenagem digna, antes que as palavras de outros que já desconhecerei passem a substituir as minhas próprias...

Marco Villarta São José dos Campos, 21 de fevereiro de 2023


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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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