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Sitchás

No ateliê de trabalho havia aquela desordem ordenada de livros, cheios de marca-páginas e o quadro branco com garatujas de ideias e tarefas. Vez por outra, o gato dormia no canto da escrivaninha. Se o humano estava ali ou não, era indiferente. Talvez para os gatos, os lugares bastem para serem índices das pessoas. Talvez pelo cheiro, talvez pelo costume desses lugares estarem ocupados pelo alguém que lhes interessa.

O player, réplica de toca-discos antigo, reproduzia um vinil com arranjo de metais. Para aquele homem, com a alma e a pele curtidas na liquidez do tempo, escrever era rito. Iniciático fazer. Como ele dizia, às vezes, nas conversas acaloradas, tal como a percepção das mais ínfimas coisas, as letras também eram signos. Metonímicos traços do que conseguimos dizer, compreender. Afinal o mundo era sorvido em pequenos goles. É o que cabe na garganta, metafórica ou não.

Nos textos lidos ou escritos, em alfabetos diversos, havia um pouco do rio do tempo. Rio manso, mas com poços, abismos. A medida deles? Uma escala de finitudes, de inacabamentos, de projetos por terminar. Os fios de cada vida, cheios de pontas, mas que podiam ser amarrados numa trama aparentemente conexa. Ilusoriamente conexa.

Afinal, a conexão não estava no nexo em si. Estava no encontro entre existências.

Durante os anos todos em que se sentou para pensar, sentir e escrever, não se sabe o quanto soube de si e dos outros que o precederam e que o sucederiam. Diante do passado ou do futuro, o gesto adivinhatório era o mesmo. Ou quase.

Como todos os outros, como todos nós, jamais saberia o efeito das palavras do seu epitáfio nos passageiros leitores que visitassem a lápide de seu túmulo ou de seus textos.


Marco Villarta

Lavras, 14 de setembro de 2023.

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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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