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Perióptico

Atualizado: 16 de abr. de 2023

Em minha juventude, morei na cidade de... quando fazia pós-graduação. Foram 4 anos intensos, talvez mais tensos do que propriamente felizes. O tempo e o envelhecimento (tenho a sensação de que são coisas diferentes) dá mais nitidez a ao que vivemos de mais banal. Cada vez me lembro menos das noites mal dormidas, dos prazos inegociáveis, das duras exigências do estudo e do trabalho. Semana passada, lembrei-me de um episódio há muito esquecido. Lembrei-me risonhamente de ter alugado um apartamento por um motivo bem pouco racional. Tentei recordar do exato porquê. Por dias seguidos, não me ocorria. Até que foi voltando a inusitada razão. Todas as tardes, voltando da universidade, eu passava por um prédio. Não sei quando me dei conta, que no segundo andar (naquele prédio o segundo andar era imediatamente acima do térreo), exatamente às 3 horas da tarde, eu via uma menina olhando pela janela. O horário era tão preciso que passei a ter uma noção mais exata dos meus próprios trajetos. Estranhamente, ela não olhava para baixo. Olhava para um ponto indeterminado, bem acima. Pela altura da janela e, presumivelmente, pela provável estatura da menina, imaginava que precisaria subir em alguma cadeira ou algo parecido para poder espiar. Após voltar de um período de recesso (curto, apenas uma semana), vi que a menina não ficava mais lá. Que o apartamento havia sido desocupado. Na semana seguinte, vi uma placa de aluga-se, fixada na mesma janela. Por um capricho sem qualquer nexo, resolvi alugar o apartamento. Deixei o meu, paguei multa rescisória e me mudei para lá. O motivo? A irrequieta curiosidade de saber o que a menina via, do ângulo em que olhava. Foram muitas medições, deduções, em relação ao ponto de vista, à altura da menina, relativamente à minha. Depois de arrumadas minhas coisas, levei umas duas semanas para ter certeza de que era a mesma perspectiva da garotinha. Não havia nada de especial na paisagem que eu vi. Era um ponto qualquer do céu, do horizonte. Passei 40 anos sem me lembrar disso, sem entender. Mas, quando fiz esse esforço, agora, voltou a me intrigar qual seria o cenário visto por ela, quais seriam as razões, quais os motivos. Ontem à noite, após ter acordado mais cedo do que eu tinha previsto, eu, finalmente, me dei conta do que era. O que a menina contemplava não consistia no que via no céu. Era somente o ato de olhar, era o estar em posição para contemplar. De alguma maneira, ela sabia que com aquela pequena estatura, veria a paisagem de fora da janela de um jeito que nunca mais seria possível. Do que ela desfrutava era do próprio ato de contemplar, como criança, aquele seu pequenino pedaço de mundo. Seu horizonte possível. Compreendi, então, a dádiva de eu ter tido a possibilidade, já na velhice, de ver, ainda que sob o ângulo da memória, um vislumbrar que se perde no caminhar do tempo, no crescer em estatura. Por um singular momento de súbita epifania, pude me acreditar criança novamente. Porém, como todo êxtase tem seu platô, restou-me o inquieto desconforto de pensar que aquela menina se via criança, sendo criança. E que o cenário, que ela usufruía, do próprio ato de contemplar, jamais seria visto por mim. E que, como seriam diferentes os ângulos, igualmente seria diversa a memória do que ela pôde ver.


Marco Villarta Lavras, 13 de maio de 2022.

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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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