top of page

Parusia


Canto aqui as dores do coração dilacerado Recanto de um mundo transfigurado, roto Getsêmani, choro, sangue, paixão extrema O cálice não pode ser de mim afastado Assim como a lança que certifica a morte Atravessando o peito, esgotando a seiva Da vida em suas últimas, derradeiras gotas Era sublime esse carinho, terno, cúmplice Porém sabia, como premonição, sua interrupção Temia a sorte dos amados, o fim de seus porquês Se há metades que se encontram nessa estrada Mais de uma dezena de existências seria necessária Para exaurir dos olhos tanto afeto, tanto amor No entanto, o mistério faz sua arte no silêncio Pois o divino não cabe nas humanas dimensões Não adianta a construção de hábil silogismo Como sortilégio, resposta, infrutífera adivinhação Somos o que somos, sem volta, sem transições O abrupto, o fortuito, o desígnio, se acaso houver Está na bruma, na névoa, em espessa, densa neblina Impenetrável pelos mais poderosos, grandiosos faróis A luz de que dependemos não vem de nossas invenções Está em toda parte, mas é traiçoeira, ilusória projeção Já que ilumina com o passado o que pensamos ser realidade A ficção não é obra imaginativa, sequer simples alegoria É a expressão do improvável, comoção que não se explica Desisto, prostrado, de evocar imperfeitas metáforas Pois que o símbolo substitui as coisas, ao custo da sobreposição O que perdemos esconde-se abaixo das gretas, desliza, escorrega Na líquida capitulação ante a angustiante finitude do eu ou do outro Como manter o equilíbrio do universo, se em seus confins cambiantes Não se dá à mostra em sua mais íntima arquitetura, na trama minuciosa, Filigrana, olhar de quem investiga os próprios passos, com perplexa dúvida Torço para que o eterno retorno seja mais que um delírio filosófico Que num renovado mundo, num novo recém criado e paradisíaco multiverso E na nossa reedição de corpos, almas, sinas e propósitos, feitos no além Que nos seja propício o oráculo, o ouvido impreciso da distante divindade Será justiça cósmica, ante amor que não cabe num infinito só


Marco Villarta Lavras, 24 de setembro de 2021.

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

Copyright © 2025. Todos os Direitos Reservados

bottom of page