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Névoa

Atualizado: 16 de abr. de 2023



A estrada era alta, recortando as escarpas das montanhas como que desenhadas entre as pedras e o limo viscoso, escorrendo em fios de água surpreendentemente límpidos. No início das manhãs, não importava se de inverno ou de verão, um odor enauseante entorpecia as narinas de quem caminhava pelo acostamento.

Antes da luz do sol começar a dissipar a neblina, aquela névoa reverberava pequenos pontos prateados, gotículas que dançavam sob a regência dos fachos de luz dos faróis dos escassos carros que cruzavam o trajeto. Há sempre na névoa um quê de mistério, uma espécie de esponja embebida de nuvens mais baixas, quase ao alcance das mãos.

No ponto mais alto havia uma curva muito fechada, um cotovelo de estrada, como descrevia o linguajar dos motoristas. Definitiva. Simétrica em seu desenho antinatural. Havia, uns passos além do guard rail meio retorcido um não sei quanto de cruzes de madeira, assinalando as vítimas do mergulho fatal no abismo que a curva contornava.

A quantidade dessas marcações nunca fazia justiça ao incontável número de acidentes, pois com o passar do tempo e com as chuvas de verão impregnando o solo argiloso, as próprias cruzes iam despencando também.

Um funesto ciclo de renovação.

Era o clímax dos ângulos retos, a quase perfeição de uma moldura ante os cenários das cidades distantes, bem lá embaixo, quase a perder-se de vista. Um misto de labirinto e mosaico.

As faixas apagadas sobre o asfalto roto e impregnado de ervas daninhas crescendo por entre as rachaduras, dava uma falsa noção de abandono. Talvez houvesse ali, o diligente trabalho dos fantasmas, que não têm a urgência do tempo e da vida.

Há graus de curvatura. No fundo, as retas são ilusões de ótica, criações meramente teóricas ou mera questão de escala. Basta esperar o suficiente para que o meio de propagação, grandes campos gravitacionais, ou, se preferirmos algo mais trivial, a medida de uma fase da vida aplicada a outra. As coisas, os sentimentos, as concepções entortam, retorcem-se. As estradas físicas também. As curvas fechadas, no jargão dos motoristas, um cotovelo. Lugares sensíveis, perigosos... os ossos quase expostos, a dor e o choque, no atrito, o abismo quase ali, ao toque das mãos que se perdem do volante, em aérea direção.

Pensar no cotovelo é abstrair do comprimento dos braços, dos gestos que se prolongam pelas mãos. Volatilizar o controle. O guard rail rompido... indício de queda. Passada e futura. Desproteção. Ainda mais no alto da serra, nas horas de neblina. O passado sinalizado pela cruz com flores de plástico. O futuro... talvez pela própria névoa, pela invisibilidade do alerta sinistro.

Uma história sem nomes. Um casal? Um viajante profissional ou ocasional, sonolento e cansado, presa das alucinações que horas seguidas de viagem provocam no motorista. Do lado mais seguro, esculpido na montanha, as pedras vertendo filetes de água, o musgo verde se esgueirando pelas gretas. O cheiro forte de verdor, a agressiva umidade, o ruído metódico da água que não cessa.

Um tanto pior no escuro da noite? Os cheiros e ruídos ainda persistiriam. Apenas a visão tentaria adivinhar onde a estrada, onde o barranco, onde o abismo. E se o guard rail estivesse rompido pela queda de uma esfinge? Não por mortes humanas, mas pelo engenho de quem consegue dirigir sem medo, uma humildade inteligente para com o macio passo felino dos abismos, pois são eles que se aproximam. Ou não?

E as flores de plástico desbotado pela umidade e pelo sol fossem tributos às repetidas derrotas que os enigmas tiveram naquela intersecção de mistérios e provas iniciáticas?

...


A moça, com o surrado blazer jeans apertando os seios arquejantes, olhava para baixo. A neblina de cima pouco diferia da neblina de baixo, do fundo do abismo. Com sua mente tão matemática, pensava que os abismos não têm escala de medida. O que está embaixo é como o que está em cima. Uma figura poligonal. Especular.

A lenda urbana da região descrevia, com variações maiores ou menores, aquela aparição. A moça loira, toda de jeans, cabelos presos, olhando para o abismo. Os carros freando para não atropelar o espectro. E repetindo ciclicamente a queda mortal, por entre os vãos do guard rail arrebentado.

Seguindo-se aos estrondos da queda, desde a frenagem brusca, ao barulho de lata se amassando nas pontas das pedras, o baque final, o agudo silvo dos vidros se estilhaçando, não havia nenhum riso de zombaria. Apenas um choro muito baixo, contido, rendição ao ciclo inevitável.

Agora, com a construção da nova rodovia, aquele antigo trecho de estrada, pouco visitado pelo tráfego de veículos, parecia envelhecer. Há formas da morte que também envelhecem. Ficaram na imaginação os que morrem por ataques de mamutes ou de tigres de dentes de sabre. E ficaram no nonsense dos filmes hollywoodianos os que, num anacronismo histórico e ambiental, se deixaram devorar por temíveis tiranossauros.

Aquela moça, aquele espectro, também havia envelhecido. Se era um fantasma, a memória de sua morte, dentro de um carro despencando pelas encostas, já se perdia. E a menção à loira do cotovelo da estrada 961, no alto da serra, havia se transformado em piada.

Havia quem dissesse que nas noites mais frias, ela desistia de ficar esperando pelos motoristas que já não passavam, pelos carros que já não caíam, e se embebedava, silenciosa e de cabeça baixa, nos butecos copos-sujos, quase na beira da estrada, onde, um quarteirão paralelo aos restaurantes da beira da rodovia, era possível beber qualquer coisa, a qualquer hora, sem as limitações da lei.

Por um tempo, diziam outros, ela havia desistido de assombrar motoristas e ficava nas encruzilhadas das ferrovias. Mas nem trens havia mais...


...


Cada tempo e cada sociedade tem suas esfinges e seus fantasmas.

Ignoro se as esfinges são fêmeas. Parece haver tradições antigas, principalmente nos povos ditos Ocidentais, que estabelecem essa ligação. As harpias, as górgonas, as bruxas disformes e de cores impossíveis. Desconheço a zoologia das esfinges. Tampouco sua anatomia ou fisiologia.

Para mim, não são os abismos que podem ser considerados especulares. Os enigmas que conjecturamos, que, ouso dizer, construímos, dizem de nós. Dos nossos medos, de nossos abismos internos.

Quando jovem, andei muitas vezes pela estrada 961. Agora, velho e aposentado, me encorajo a dizer que vi, umas duas ou três vezes, uma loira parada no acostamento, junto ao guard rail rompido, olhando para baixo.

Mas nunca vi seu rosto. E nem acreditei naquela cena. Não sei se a atropelei, ou se o espectro de desfez pelo deslocamento de ar com que meu caminhão passou pelo local. Motoristas profissionais costumam ser supersticiosos. Penduram talismãs no espelho interno, alguns pintam carrancas em algum ponto da lataria dos caminhões.

Nunca fui desses, mas costumava dirigir ouvindo música no rádio. Só me lembro de nessas ocasiões, estar ouvindo canções com agudas vozes femininas. Talvez haja esfinges lá fora e haja as aqui, bem de dentro. Não sei se essas abstratas sereias, cuja voz saía de meu rádio, afugentaram aquela loira, lá fora. Pelo sim e pelo não, só me lembro de nunca ter olhado no espelho, nem de dentro, nem de fora da boléia, nessas horas de mistério.


Marco Villarta

São José dos Campos, 10 de outubro de 2022. (Reescrita do original escrito em 1985)

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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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