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Livro

Atualizado: 16 de abr. de 2023



Ah, o rio de Heráclito. Há, enfim, devir...

M.V.


Ter nascido naquela aldeia não era a pior coisa que poderia acontecer para alguém. Trisme talvez fosse orgulhoso, sim. Não de suas origens, já que tinha dificuldade de contar por meio de números as múltiplas estações que havia presenciado.

Sua cabana tinha uma fama de mistério. Seus detratores até diziam, malevolentemente, que a casa era mal-assombrada. Trisme respondia ao sarcasmo com igual dose de veneno. Dizia que os fantasmas com quem vivia não perdiam tempo em assombrar. Tinham, segundo ele, seus próprios medos.

Há construções humanas que impactam a imaginação ou o conhecimento de nossos semelhantes pela magnitude, pela monumentalidade... Trisme era um homem simples, mas, aos olhos dos demais habitantes de sua aldeia, era respeitado, temido ou até mesmo desprezado por ter grande erudição.

Não era essa a palavra que usavam, claro. Diziam ser Trisme homem de muitos saberes e de muitas profundezas. Durante uma ou duas gerações, não se tinha notícia de como o pobre e solitário pescador tinha adquirido um repertório tão vasto e tão surpreendente.

Um dia, numa festa da aldeia, sob efeito de um pouco de álcool, mas sobretudo do cansaço e de uma aguda solidão, Trisme deixou escapar que a fonte de seus conhecimentos era uma biblioteca que mantinha em sua cabana.

O ceticismo foi geral. Como podia caber um conjunto de livros naquela cabana pequena? E, embora todos tivessem conhecimento da existência de máquinas maravilhosas que podem hospedar milhares de livros, não havia eletricidade ou sinal de telefonia ou internet naquela aldeia.

Por vezes, algumas crianças tentaram entrar na cabana quando Trisme estava em seu pequeno barco, distante da praia, pescando. Todas as tentativas foram malsucedidas. Por artes sabe-se lá de que ser do céu ou do inferno (na visão dos pais das crianças), o ferrolho da porta simplesmente não cedia a qualquer investida de arrombamento.

Quando percebeu uma dessas tentativas, o velho Trisme tomou suas providências. Mudou o horário da pescaria. Recalculou o horário das marés e as fases da Lua e começou a lançar seu barco na água durante as madrugadas. Na casa, em cima da porta, fez uma carranca de madeira, pintou de vermelho e preto e colocou um lampião dentro da carranca, de maneira que, já de alguma distância, parecia um ser de outro mundo, infundindo medo em quem tinha a mínima pretensão de invadir a casa.

Nas conversas no único bar do vilarejo, a biblioteca era assunto frequente. Trisme não era muito de se enturmar, mas quando o fazia, era capaz de falar sempre de um novo assunto, que, desde que havia mencionado sua biblioteca, dizia ter lido em um livro.

Havia os que se encantavam. Para esses, o livro parecia um objeto mágico, coisa de deuses, anjos ou duendes. Como pode um pedaço de papel e couro, com desenhos mortos, adquirir vida aos olhos de alguém a ponto de entrar-lhe pela mente, tocar seu coração e fazer dele e dos tantos que o ouviam, uma voz que provavelmente ecoava vindo de outros mundos, talvez até outras dimensões?

Era o que esses pensavam.

Um incidente – que inicialmente pareceu poder dar pistas sobre a biblioteca – acabou se tornando motivo de ainda mais inquietações, versões fabulosas e intrigas. Sim. Havia uma espécie de competição entre os demais habitantes do vilarejo em torno de quem havia descoberto finalmente o segredo de Trisme.

Um dia, sentado na praia, após ter regressado de sua pescaria, um grupo de meninos que espionava o triste pescador, ouviu-o resmungando. Conseguiram, com dificuldade, mas em condições de relatar para os demais habitantes (seja o que ouviram, seja o que por falta disso, acabaram inventando), ouvir os lamentos de Trisme sobre uma página que havia perdido. Para sempre, queixava-se baixinho o velho pescador.

As hipóteses e as versões multiplicaram-se, desde então. Quase que Trisme foi acusado publicamente de bruxaria, o que, naquela comunidade, era coisa grave.

Trisme tinha o hábito de falar sozinho, e, muitas vezes, sentado numa mesa no fundo do bar, ruminava ensimesmado: “A leitura é o infinito”. Quem o ouvia – porque havia a extrema curiosidade de cada palavra, de cada passo, de cada gesto seu – atribuía isso ao conjunto das suas esquisitices.

Até quase o final de sua vida Trisme vivia dos peixes que pescava. Às vezes trocava um balaio de peixes com sal ou querosene ou pagava um copo gin no bar do vilarejo. Nos últimos meses, o velho já não saía com seu barco. Reuniu algumas quinquilharias e as vendeu, contratando com o valor dessa venda alguns baldes de leite em um vizinho que tinha um sítio e um retiro leiteiro.

Após algumas semanas, Trisme veio até o bar com um embornal. Entrou, como de costume, só que, em vez de pedir seu copo de gin, colocou o embornal sobre o balcão, abriu e tirou de dentro uns queijinhos hexagonais, de um amarelo ouro bem diferente da coloração a que estavam acostumadas as pessoas daquela aldeia, em relação aos queijos que conheciam.

Trisme ofereceu dois queijinhos para o dono do bar. Disse que tinham sido feitos por ele mesmo. O dono do bar pegou uma faca pontiaguda e retirou um pedaço pequeno da casca do queijo e levou à boca. Surpreendeu-se com o sabor. Era bom. Pagou o que Trisme havia estipulado com preço dos queijinhos.

Trisme pôs o embornal novamente às costas e saiu do bar. Foi até a mercearia ao lado e comprou sal e querosene. Foi para casa e, por três meses, não se teve mais notícia dele. Foi visto apenas mais uma vez, andando pela cidade, sem muita direção. Passo pelo bar e pediu seu copo de gin. Depois de servir, o dono do bar, perguntou onde Trisme havia aprendido a fazer queijos. Depois de virar o restante do gin na garganta e como que engolir um vulcão, limitou-se a dizer: “Achei a receita na minha biblioteca”.

Aproximadamente três meses depois, o barco de Trisme foi avistado à deriva, não tão longe da praia. Quando o barco foi resgatado, os pescadores que tinham se prontificado a trazer o barco perceberam que Trisme estava morto, deitado no chão do barco. Parecia dormir, sem sinais de mal-estar súbito ou de suicídio.

Foi enterrado no cemitério local. O delegado mandou escrever em uma tabuleta as datas de nascimento e a morte, o nome Trismegisto Olivério Carneiro, e um epíteto. “Homem justo. Tinha uma biblioteca”.

Após o sepultamento, um grupo de homens dirigiu-se à cabana de Trisme, acompanhado pelo policial do vilarejo. Haviam achado uma estranha chave amarrada à cintura do corpo de Trisme. Usaram-na e, em razão disso, não tiveram muito trabalho para entrar na casa.

A grande curiosidade, obviamente, era a biblioteca. A cabana era muito simples e com muito pouca mobília. Num canto de uma das paredes do cômodo principal, havia uma pequena estante composta apenas por duas prateleiras, que, acompanhando o ângulo das paredes, perfaziam um V. Na junção dessas tábulas havia um espelho. Na extremidade esquerda estava uma Bíblia, edição King James, em inglês. Na extremidade direita, um livro grosso, meio desconjuntado e encapado com um puído pano verde. Ainda se podia ler em seu frontispício “El libro de arena – J. L. Borges”.

Era essa a sua biblioteca. Tive contato com essa história quando passava férias num resort que ficava próximo a essa aldeia de pescadores no litoral de.... Certo dia resolvi explorar o lugar e topei com o vilarejo. Uma meia hora de bebidas e conversa no bar me fez ouvir uma referência velada entre dois habitantes locais sobre Trisme. Foi um tanto trabalhoso (e oneroso) ter acesso aos detalhes desse relato.

Um detalhe que eu ia me esquecendo... depois que voltaram da casa de Trisme, os homens que entraram na casa procuraram o delegado e, além de contarem o que tinham visto lá, pediram para que a lápide fosse modificada. O delegado, secamente, respondeu: “O que está escrito, está escrito. Vai ficar assim, mesmo. ” No caso de Trisme, parece que a ambivalente tradição de se registrar os feitos apregoados também prevaleceu.

Só depois que terminei de escrever essa história e enviei para um amigo – que publicou em um jornal local, como se fosse o autor do relato – é que me dei conta de um aspecto intrigante. Jorge Luís Borges escreveu um livro, cujo conto O Livro de Areia também dá título ao conjunto. Nesse conto, há um livro cujas páginas não se repetem cada vez que é aberto.

Trisme parece ter encontrado um livro com essas características. Mas se foi assim que ocorreu, o autor desse livro monstruoso e infinito não é Borges. A não ser que em uma de suas páginas, tenha havido, ao gosto do bruxo escritor argentino, uma falsa e embaralhada atribuição de autoria. Não se tem notícia de que Borges fizesse queijos ou escrevesse uma receita culinária.

Há quem diga que a biblioteca de Trisme se reduzia a dois livros, a Bíblia e o tal Livro de Areia (tentei localizá-lo, mas todos os relatos indicam que o livro se perdeu). Eu penso diferente. De alguma maneira, eram três. Não sei dizer porquê e talvez minha hipótese seja tão insana e desvairada quanto a vida e a obra de Trisme (por que não dizer que sua própria vida não seria um conto fantástico?). Mas acho que o espelho não era casual. Por alguma razão, aquele espelho era a terceira obra da biblioteca de Trisme.

Um homem cujo mistério insolúvel, isso sim, vai assombrar todos os que tiveram e tiverem contato com sua história. Um leitor de uma biblioteca infinita que tinha dois livros e um espelho. E talvez nesse espelho, no reflexo invertido de sua face, também Trisme lesse textos tão desmedidos e tão infinitos quanto os livros físicos que compunham sua pequena estante triangular. Textos que jamais saberemos quais foram, não porque o espelho vai mostrar uma outra face. A face que o próprio Trisme porventura enxergava em seu espelho já não era sua. Nesse ponto, ela era tão alheia quanto os nossos reflexos no vidro esmaltado.

Ah, sim... um último ponto. A Bíblia versão King James era uma tradução para o inglês. O Livro de Areia estava escrito em castelhano. Trisme não lia em nenhuma dessas línguas.


Marco Villarta

Lavras, 06 de abril de 2022.

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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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