Imigrante
- Marco Villarta

- 22 de jun. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 16 de abr. de 2023
Para meu nonno Luigi Villalta
Do navio, a espuma do mar fazia desenhos estranhos na trilha esbranquiçada da popa. Também era branca a névoa do inverno que se afastava junto com a terra, porção palpável do mundo que ia deixando para trás.
No convés, os adultos, mais reverentes, apoiavam os braços nos joelhos dobrados e olhavam para uma abstrata esperança representada, talvez, na sujeira do chão. Aquele solo era o único que restava, e apreender seu movimento e sua mudança era prever uma outra terra distante... e, quem sabe, menos cruel.
Às vezes passeava no meio dos velhos e se divertia em pular suas pernas estendidas e ouvir suas vozes trêmulas bramirem tantos “maledetto” que o vento do mar se misturava às risadas dos outros meninos, aos choros das crianças de colo e às canções sem-fim que as mães cantavam para os filhos doentes.
Vez ou outra, havia um tumulto e ele corria atrás sem saber muito bem o que era. Voltava com um pedaço disputado de pão, arrancado a tantos braços famintos. Sentava-se, então, de costas para o parapeito, para o mar infinito, e comia muito devagar, como quem assistia àquele idioma estranho da missa, enquanto algumas lágrimas quentes aqueciam seu rosto sujo e crestado de neve e, agora, de um pouco de sol que ia ficando cada dia mais forte.
À noite deitava-se na madeira úmida e sonhava com as primas brincando de roda, com as sopas ralas e com soldados, e ainda com batinas muito pretas, passando ao lado de bicicletas rangendo e se equilibrando nos morros cheios de pedras.
Passava-se mais um dia, e ele continuava sem saber que tempo era aquele, em que casa chegariam e porque tinha que estar ali sem aquele cachorro abandonado que havia se acostumado a criar e com quem repartia os raros pedaços de pão.
Tinha dias em que pensava que ia crescer dentro do navio e que, quando chegasse a um porto que não conhecia, não saberia mais quem era. Então encolhia a cabeça, tapava os ouvidos com as mãos e começava a repetir baixinho, baixinho, seu nome...
Luigi, Luigi, viene qui... a frase era carregada pelo vento e ia se despedaçar na espuma branca que se perdia onde os olhos doíam, naquele ponto bem longe do mar.
Quando a noite ia caindo, - e era como se a noite não terminasse de cair nunca mais – os nonnos velhos cantavam canções que faziam a fome se deter em sinal de respeito, enquanto os homens batiam, abertas, as palmas das mãos e as mulheres ninavam os nenês quase mortos de frio.
Quantas vezes, olhando para o mar monotonamente infinito, via seres estranhos acenando e se desfazendo com o vento. Ouvia vozes no fundo do barulho contínuo do motor e sonhava sempre com uma menina de rosto indefinido que usava um lenço na cabeça e ia vender leite para os seus pais.
Nunca sabia por que a conversa das nonas de pele tão enrugada parecia diferente de antes... por que parecia já entender aquela língua, senão como uma música que doía fundo no peito, uma dor que não tinha nome (e que anos mais tarde, aprenderia, numa outra língua, a chamar de saudade)?
Os dias começavam a ficar mais quentes e era bem melhor já não sentir o frio que fazia mudar o barulho dos ossos quando batiam no chão. Quando chovia, era uma festa deitar no convés e fechar os olhos, ouvindo distante a queixa das mães que não conseguiam proteger os filhinhos nos braços dormentes.
Agora, as noites eram estreladas e a lua cheia, quando chegava, iluminava as faces, criava vultos e sombras e mostrava seres estranhos, mas mais alegres, brincando e acenando ao longe. Os nonnos roncavam e uma voz perdida cantava desafinada.
Numa madrugada daquele tempo só de mar e de fome (era novembro), todos se levantaram e ergueram os braços, gritando. As mulheres choravam e todos se abraçavam, dançavam. Os nonnos cantavam, roucos, uma outra canção, que ele nem conhecia... por um ato de instinto passou a mão pelo rosto e sentiu... a barba feita.
Desceu a rampa do navio com a charrete feita pelos nonnos, levando a mulher (era aquele que vendia leite) e os filhos para as missas de domingo. Viu nos braços da esposa multiplicarem-se filhos chorando, crescendo e colhendo café.
Pôs o paletó cáqui nos ombros, espantou a vaca da sala de chão de tijolos e sentiu uma forte dor no estômago. Pareceu que uma névoa mais espessa que a do navio fazia uma noite que custava um pouco mais a cair completamente.
Sentiu-se imobilizado, estático a olhar para os olhos marejados de netos desconhecido que miravam a fotografia envelhecida na lápide, tentando conceber, na distância dos mapas, uma impossível viagem sem tempo em que a espuma do mar fazia desenhos estranhos na trilha esbranquiçada que ficava para trás.
Continuou olhando para as nuvens, enquanto a canção dos nonnos se perdia, ainda, no vento que se distanciava do mar...
Marco Villarta
Uberlândia, 12 de fevereiro de 1993.
*Conto premiado com menção honrosa no X Concurso nacional de contos Clarice Lispector, Uberlândia/MG, 1995.



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