Bliêdna*
- Marco Villarta

- 1 de jun. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 16 de abr. de 2023
Pisou o solo amarelecido no poente lento e róseo. Não fosse o seu treinamento, acharia que o aroma almiscarado provinha de alguma rara flor. Mas não havia flores. No horizonte monótono somente rochas e poeira. Apesar de seus músculos ainda fracos, fez o esforço programado e deu alguns passos, observando as marcas de sua bota na fina areia, quase talco, que recobria o chão. O movimento seguinte foi instintivo. Olhou para o céu, mas a semiclaridade do entardecer não permitia ver algo que não fosse o sol pálido. Era o fim da jornada? Para ele, sim. Sabia que seu corpo, apesar de todas as precauções, estava impregnado de radiação. Seria inútil pensar na viagem de retorno. Para os próximos, seria a continuidade. O pouco oxigênio enevoava seus pensamentos, mas soube manter o controle. Ligou o áudio do seu traje e pronunciou as palavras há muito memorizadas, o script cuidadosamente preparado para dar o tom épico daquele momento e daquele passo. Ali, no entanto, no seu destino final, a banalidade do silêncio e do vazio desnudavam qualquer ato ritual. Após ter enviado a gravação, girou o corpo lentamente, 360 graus, e observou, já sem compromisso estabelecido, o local em que havia desembarcado. Refletiu, não sem alguma frustração, que todos os pioneiros talvez tivessem experimentado aquela espécie de vazio, uma suspensão da euforia. Estar ali era de uma simplicidade decepcionante. Era como estar em qualquer outro lugar. E estar sozinho tirava qualquer atribuição de heroísmo. Quem estava (tão) distante, iria achar um ato memorável. Seria um elencamento interminável de clichês para tentar definir o que não podiam ver, nem compartilhar, senão com a defasagem já sabida. Não podiam estar nem pelo espaço, nem pelo tempo. Pensou que era mero acidente ser um representante humano. Talvez houvesse, já, milhões, bilhões de tardígrados arrastados pelo mesmo vento que seu veículo havia utilizado como propulsão. A paisagem era indiferente tanto para os minúsculos ursos d´água, quanto para ele. Poderia perambular por alguns minutos antes de retornar ao veículo e preparar o desembarque de equipamentos. Teria três semanas. Tudo parecia estar correndo bem. Acreditou que seria possível cumprir a missão. Após esse tempo, seria a espera. Plácida? Serena? Provavelmente, não. Não tinha como ser. Mas não sentiria dor. Dia após dia, fecharia os olhos mais cedo e demoraria mais para reabri-los, até... Pensou na última tarefa. Não seria divulgada pela imprensa. Alocar sua própria lápide, encaixando-a numa das extremidades da câmara hiperbárica, de onde, em algum momento, não sairia mais. Não soube se a noite caiu rápida (não tinha experiência de viver os ciclos que tanto havia estudado) ou se deixou mais tempo que havia percebido nessas divagações. Já era possível ver as estrelas no céu. Olhou longamente para a abóbada agora escura e, pacientemente, fixou sua visão. Dentro do capacete, esboçou um leve sorriso. Como a superfície em que estava, a secura não lhe permitiu nenhuma lágrima. Ficou alguns minutos buscando fixar aquela imagem em sua mente. Finalmente, virou-se e retornou ao veículo. Havia olhado para aquele ponto discreto e pequeno na paisagem do céu noturno. Viu-se longe dele, viu-se nele, num jogo de espelhos temporal. Era também brutalmente simples aquele pálido ponto azul. Sozinho, silencioso, sobrepôs com outras, as primeiras pegadas de um ser humano em Marte.
Marco Villarta São José dos Campos, 23 de maio de 2022. *Pálido (palidamente)



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