Antigênese
- Marco Villarta

- 3 de jun. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 16 de abr. de 2023
Seu corpo nu era jovem como a Terra recém criada. A relva rala deixava restos de clorofila nos bichos que passavam, como telas ainda sem secar. Nos olhos que quase se cegavam de tanta claridade, o contorno das formas confundia-se com a profundidade dos seres que se apresentavam. A novidade do existir não tinha inaugurado a fome e a luta entre presas e predadores. Cada paraíso tem sua mecânica e seus mitos. Naquele mundo, destacado dos demais, a intensa perplexidade tecia os fios de uma teia plural. Como num jogo de roda, cada planta, inseto, animal maior; cada brisa ou réstia de luz; cada textura ou fragrância tinha o inédito de precisar ser descoberto. Se alguém previsse que um dia, no futuro, haveria música, morte, medos e sorrisos, seria tido como profeta ou como louco. Mas ainda não se sabia que havia linguagem. Caminhou lentamente para a beira do promontório. A vasta estepe, abaixo e para além de seus olhos, reverberava a luz da manhã na névoa esbranquiçada. Foi quando, embaixo, viu seres semelhantes a ela. Como pareciam menores, pela distância, imaginou-os diminutos. Soube não estar sozinha. Percebeu, então, que o igual e diferente eram medidas do seu assombro e da sua vontade de estar perto. Ao ouvir um vulcão produzindo seus primeiros sons, abriu sua boca e surpreendeu-se em escutar-se grunhir uma música rouca, a que responderam os pássaros. Num tempo sem tempo viu muitas eternidades e muitas incompreensões. Finalmente, era a hora de dormir. Quando os mitos dormem, é porque o mundo acabou. Deuses envelhecem quando não há quem os adore, mas o leito fluido da memória banha a todos. Seu corpo foi, aos poucos, confundindo-se com a Terra de onde nasceu. As palavras, tão de seu convívio, foram se aquietando, tal como a pele crestada confundia-se com as folhas. Na placidez do seu silencioso estertor, fechou os olhos. Desfez-se a luz.
Marco Villarta Lavras, 13 de fevereiro de 2017.



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