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Anfitrião

Atualizado: 16 de abr. de 2023


Qual era mesmo a sua profissão? A tabuleta de papelão, com letras mal pintadas e escorridas, dizia ser “colecionador”. Na verdade, aceitava, por uns trocados, ir a casas que tinham sido de pessoas que moravam sozinhas. Após a morte, depois dos saques das coisas minimamente valiosas, restavam quinquilharias, sem nenhum valor para quem não viveu cotidianamente a história dos que se foram. Dizia prestar um favor às almas desencapadas (era esse o termo que usava). Que seu trabalho fazia com que ficassem como tinham vindo à existência. Sozinhas e sem os acessórios, as geringonças que foram acumulando. Que não precisariam disso “do lado de lá”. Morava na última casa da rua, quase no que havia restado de uma velha chácara. Não se sabia dos donos. Ele dizia ter herdado a casa de seu avô. Nunca ninguém entrava na casa. Os carrinhos de mão cheios de bugigangas entravam e, talvez como no interior de um buraco negro, de lá não saíam mais. Raros objetos ele vendia ou trocava. Era magro, esquálido, mesmo. Barba rala, olhos escavados e uma pele flácida e muito enrugada. As roupas eram sempre uma calça social, sapatos, cinta e uma camisa de mangas compridas, arregaçadas até o final do antebraço. Eram desbotadas, mas nunca puídas. Talvez se vestisse com roupas de suas permitidas incursões nas casas dos mortos. Parecia ser um acumulador, mas não havia notícia de ratos ou insetos nocivos saindo de onde residia. Não usava eletricidade, nem ligação de água na rede pública. Mas tinha aspecto asseado e não cheirava mal. Surpreendentemente, não parecia desnutrido. Curioso, já que não parecia ter alimentos para cozinhar. Várias gerações daquele bairro nasceram, cresceram e morreram, vendo sua figura praticamente inalterada. Quando morreu, foi encontrado sentado, com a serena aparência de quem dorme um sono inabalável, encostado à porta da frente. Como era até estimado pelas pessoas da vizinhança, teve um funeral modesto, providenciado por elas. Quando um grupo entrou em sua casa, deparou-se com paredes inteiramente tomadas por prateleiras simples, que abrigavam os objetos coletados. Tudo era muito limpo, mas parecia que haver uma atmosfera de absurda antiguidade. A pouca luz realçava essa impressão. O grupo de vizinhos saiu da casa, trancou a porta e planejou informar as autoridades para decidirem o paradeiro da casa e dos objetos. Não houve tempo. Na mesma noite, embora sem nuvens de chuva, um raio atingiu a casa, que se consumiu num incêndio rápido e totalmente destrutivo. Nada restou. Não houve sequer tempo de os bombeiros tentarem apagar o fogo. O dia seguinte foi de céu muito azul e uma brisa agradável. Sete casas distante, um dos vizinhos que havia entrado, pensativo, olhava para as fotos que tinha tirado da casa com seu celular. Por um breve momento, pensou que aquele homem sem nome, sem história conhecida, teceu uma para si, enredando os objetos dos mortos solitários. O universo tem seus desígnios, ruminou. Esse homem sem nome não teria quem se incumbisse de seus objetos, sequer daqueles que havia preservado e articulado naquela casa quase impossível de estar lá.


Marco Villarta Lavras, 23 de abril de 2022.

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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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