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Viagens oceânicas I

Atualizado: 27 de jun. de 2022


Página Quarta

Existem muitas crônicas sobre viagens e descobertas pelo Oceano do Quarto Orbe.

Vamos relatar a primeira delas.

Como todos sabem, a massa de terra continental do Quatro Orbe fica centralizada, sendo cercada por um oceano que banha suas costas. Isso faz com que mais da metade do nosso planeta seja constituído por essa massa de água. São poucas ilhas nesse mar aberto. As ilhas do Hemisfério Sul ficam no mar interno e não no Grande Oceano.

O primeiro navegador que conseguiu voltar para contar suas proezas foi Od Issin Báh. Embora todos os seus marinheiros tenham perecido e ele tenha retornado sozinho, considerou-se (e ainda se considera) grande feito ter atravessado o Grande Oceano por toda a face do planeta composta somente de água.

Od Issin Báh saiu de sua região, no extremo sul do continente, atravessou todo o Grande Oceano no sentido longitudinal e desembarcou no ponto extremo do Hemisfério Norte. Havia várias lendas sobre as dificuldades para quem tentasse tal empreendimento.

O primeiro obstáculo, segundo essas lendas, era o desconhecido Pólo Sul do Quarto Orbe. Segundo essa supersticiosa visão, o Pólo Sul seria um buraco, dentro do qual um redemoinho contínuo tragaria qualquer navio, e o destruiria espetacularmente, dada a violência de sua força e a ferocidade de suas ondas. Esse suposto redemoinho teria a profundidade do planeta, já que se acreditava que o mesmo processo ocorria no Pólo Norte. Assim, o redemoinho atravessaria o centro do Quarto Orbe, de norte a sul. Acreditava-se que quem se aproximasse de um desses Pólos, seria destroçado e seus despojos lançados em direção às luas que ficavam na direção dos Pólos.

Das 22 luas do Quarto Orbe, duas ficam em órbita “estacionária” sobre os Pólos, o que quer dizer, na verdade, que se movem na mesma velocidade que o Quarto Orbe, já que nossa órbita é de pólo a pólo, com leve inclinação de 12,5 graus e o continente voltado para a estrela principal do nosso sistema binário, Caronte, enquanto a massa de água estava quase todo o tempo mergulhada na escuridão, a não ser pelo curto período em que era iluminada pela segunda estrela, Canina. A lua Amur Lá fica defronte ao Pólo Sul, enquanto a lua Reite Ki fica diante do Pólo Norte.

Seu barco, Pikwód, foi construído com as melhores técnicas de navegação de sua época. Dizia-se que a madeira tinha vindo da floresta sagrada de Igdrazew, cortada por um gigante, lenhador que possuía um único olho entre as sobrancelhas, chamado Bânyan Siklop. Contratou um nostromo de sua inteira confiança, o também lendário Arthur G. Todos os marinheiros eram experientes e destemidos, não menos que o próprio Od Issin Báh.

A viagem, que durou 10 anos solares, foi cheia de perigos. Longos períodos de escuridão, e peixes que pareciam cantar, um som que costumava enlouquecer os marinheiros. Od Issin Báh ordenou que todos pusessem cera de abelha nos ouvidos. Como não havia cera suficiente para todos, faltou para um dos marinheiros. Ele próprio preferiu assumir esse risco. Pediu que o amarrassem ao mastro das velas e esteve perto da loucura.

Nas poucas ilhas em que desembarcaram para organizar provisões, enfrentaram de tudo: feiticeiras malévolas, monstros marinhos, plantas venenosas... pouco a pouco os demais membros da população foram perecendo, até que restou somente ele e Arthur G.

O que era pouco conhecido antes da viagem de Od Issin Báh era que o Grande Oceano do Quarto Orbe, do outro lado do planeta em que fica o continente único, comporta-se como um ser vivente. Alimenta-se dos sonhos e temores dos marinheiros. Por algumas semanas, Id Issin Báh achou que além dos dois, havia também um tigre no navio. Arthur G., por sua vez, pensou que o terceiro passageiro era um urso polar.

A tal ponto chegou o delírio – supostamente provocado pelo Oceano – que, em primeiro lugar, eles mataram os animais intrusos (sem saber com certeza se estavam assassinando um animal selvagem ou o colega de barco). Logo perceberam que não surtia efeito. Por vezes, havia dois Id Issin Báh e dois Arthur G.

As águas do Grande Oceano não são salgadas. Os minerais em solução nas suas águas dão um sabor entre doce e amargo, ambos muito intensos, para quem ousar provar. O sabor é extremamente enjoativo, nauseante.

Quando desembarcaram na última ilha antes de alcançarem o extremo norte do continente, já não sabiam se o companheiro era a mesma pessoa que havia partido na expedição ou um insidioso duplo, produto de uma espécie de vampirismo psíquico do Grande Oceano.

No último trecho navegado, o barco desmanchou-se por conta de um ciclone de tamanho indescritível. Od Issin Báh ficou alguns dias desacordado, prostrado em algumas tábuas flutuantes.

Quando chegou à praia no norte do Grande Continente, foi jogado com violência por uma espécie de tsunami nas costas arenosas. Acordou sufocado, com a cabeça enterrada na areia e um cão bem velho lambendo-lhe as feridas. Parecia seu cão, mas estava tão longe de sua aldeia, no Hemisfério Sul, que duvidou que aquele cão fosse real.

Deu-se conta que Arthur G. não estava por perto. Nunca soube do que aconteceu com o companheiro e amigo. Caminhou tropegamente em direção aos ruídos que pareciam indicar uma aldeia próxima. Lá, deparou-se com uma estátua fúnebre em sua homenagem. Descobriu depois que em todo o continente a maioria das aldeias havia construído tais monumentos.

Desmaiou novamente e despertou muitas semanas depois, aos cuidados de moças sorridentes. Perguntaram-lhe o nome e origem. Quando se identificou, elas soltaram gargalhadas. “Od Issin Báh morreu há muito tempo”, disseram.

Depois de recuperado, com provisões e roupas que lhe forneceram, começou sua viagem pelo continente, com intenção de chegar à sua aldeia. Embora estivesse com aparência menos terrível do que quando emborcou na areia da praia, ninguém acreditava ser ele o grande herói Od Issin Báh. Em algumas aldeias, diziam-lhe que nunca havia existido tal herói. Que era personagem de mitos e lendas.

Levou mais 10 anos para atravessar todo o continente. Quando chegou finalmente à sua aldeia, reconheceu-a pelo estandarte em frente a sua villa. Havia um segundo estandarte, além do primeiro, com as cores da sua família. O segundo era um bordado, em tamanho natural de um humanóide, com a sua fisionomia.

Apressou o passo o quanto pôde em direção a sua casa. Um cão muito velho e moribundo, rosnou baixo. Abriu com dificuldade os olhos e abanou levemente o rabo, antes de sucumbir ao tempo e à velhice. “Gasor, meu velho amigo...” e, pela primeira vez, em 20 anos, escorreram lágrimas por sua pele crestada e enrugada.

O final da história de Od Issin Báh tem tantas variações, quantos são os cronistas que se ocuparam de sua fantástica e impossível aventura.

O quanto há de verdade em cada uma delas pouco importa. Como dizia o primeiro grande cronista Herostides, não basta uma história ser verdadeira. Ela tem que ser capaz de arrancar de dentro o coração de um homem e ferver o sangue de uma mulher. Fazer os anciãos pensarem ser jovens ainda e fazer com que a terra trema, de maneira sutil, toda vez que for (re)contada.

Em algumas aldeias, junto à estátua de Od Issin Báh, encontra-se também a estátua de Gasor. Em outras, um tigre ou um urso polar.


ContraPágina Quarta


Há um grupo de hereges do Quarto Orbe que não duvidam dos feitos náuticos de um grande herói. São céticos, porém, quanto ao fato de Od Issin Báh ser um ser vivente do Quarto Orbe. Para eles, a história é fantasiosa demais para alguém deste planeta. E como acreditam infalivelmente na existência de outros mundos, com seres viventes que, de alguma maneira, se comunicam com os do Quarto Orbe, há entre eles um número igualmente grande de versões sobre a origem extraplanetária de Od Issin Báh.


Marco Villarta

Lavras, 25 de junho de 2022.


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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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