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Crônicas Impiedosas I


Em abril de 1553, lamentava-se na Europa os 100 anos do início da queda da cidade de Constantinopla, que foi conquistada pelos turcos otomanos, de religião islâmica. Nas terras coloniais brasileiras, D. Duarte da Costa, nomeado Governador Geral da Bahia, estava a caminho, tendo chegado em julho à cidade de Salvador que era também capital do Estado do Brasil, instituído em 1548 (e que sofreria separações administrativas a partir de 1572). As terras coloniais eram governadas simbioticamente sob a espada da Coroa e sob a Cruz do Cristianismo Católico. Em Paris, no mesmo mês, há o primeiro julgamento pelo Tribunal da Inquisição, da obra do aragonês Miguel Serveto Conesa, também conhecido por Miguel Servet, Michaellis Servetus, Michael Servetus, ou até mesmo pelo pseudônimo de Michel de Villeneuve. Médico, filósofo, humanista e teólogo, foi acusado por opor-se ao conceito da Trindade, por ser contra o batismo infantil, mas, talvez ainda mais, por professar a misericórdia de Deus que não condenaria ninguém ao inferno, que seria consequência pura e simplesmente dos atos de vontade por pensamentos, palavras e ações de cada pessoa. Presidia o tribunal o frade dominicano e doutor em Teologia Matthieu Ory. Mais tarde, em junho do mesmo ano, o mesmo clérigo preside o auto-de-fé que condena à morte o médico e estudioso Miguel Serveto e ordena a queima de suas obras. O médico é preso em Vienne e, por influência de Calvino, condenado à morte, o que ocorre em outubro de 1553, nos arredores de Genebra, com o último exemplar de sua obra A restituição do Cristianismo preso à sua perna. Corre uma versão não oficial de que, ao sair do local da prisão em direção ao patíbulo, um puritano teria perguntado ao sentenciado se temia mais o fogo terreno que o aguardava ou o fogo eterno. Miguel teria supostamente respondido que acreditava ser Deus pura misericórdia e que viveria eternamente na memória desse único Deus, ilimitado e incognoscível. Miguel Serveto Conesa foi o primeiro europeu a descrever a circulação pulmonar e a utilizar a gramática latina aplicada à língua espanhola. Diz ele em sua obra condenada: “[...] assim, esse espírito ardente e nossa alma estão igualmente ligados ao corpo, fazendo um com ele e tendo sangue como alimento; ela é soprada, apoiada e nutrida pelo espírito arejado através da inspiração e expiração, de modo que há um duplo alimento para ela, espiritual e corporal.” Sua maior heresia talvez tenha sido não perceber a inexistência dessa respiração espiritual e intelectual nos poderes instituídos do seu tempo.


Marco Villarta Lavras, 13 de abril de 2023.

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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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