Os ascetas de Nölt
- Marco Villarta

- 30 de jun. de 2022
- 4 min de leitura
Página Quinta
Logo adiante do Grande Deserto Central, na direção sudeste do Grande Continente do Quarto Orbe, mora um povo que evita o contato e vive de maneira peculiar. A língua falada por eles (melhor seria dizer: as línguas) é considerada quase impossível de ser aprendida por praticamente todos os demais povos do Quarto Orbe.
A região, na língua franca do Quarto Orbe é chamada de Nölt. A cidade principal (não é possível chamá-la de “capital”, por razões que serão explicadas mais adiante) é chamada de Rabqu. Seus costumes chama a atenção.
Praticam regularmente a meditação e costumam ajudar-se mutuamente. Fazem mutirões para construir as casas dos vizinhos, para as colheitas. Constroem estradas e pontes juntos e celebram nascimentos, casamentos e funerais, de modo que toda a comunidade local participa desses momentos.
São de pouco falar e recusam-se a ter uma escrita que represente os sons de suas línguas. Consideram irremediável sacrilégio. Têm, no entanto, sofisticadas notações científicas para a matemática, física e química e biologia, embora não tracem fronteiras tão rígidas entre esses campos do conhecimento.
O caso mais intrigante para os demais povos, no entanto, são as línguas de Nölt. O contato que outros povos tiveram com elas foi por meio de algumas gravações holográficas com algo parecido com preces. Por alguma razão, houve desvio temporário de sinal e outras regiões do Quarto Orbe acabaram captando algumas horas dessas transmissões.
Os humanólogos e linguistas de outras regiões tentaram decifrá-las, na esperança de que isso pudesse facilitar o diálogo com o povo de Nölt, mas foi infrutífero o esforço. Havia também uma lição ou conferência (não temos como saber exatamente), de um linguista e/ou sacerdote. Depois de muitas audições da projeção, chegou-se a um suposto nome, Snikliw Nhoj Tsniaga. É o único registro que temos em suas próprias línguas e que conseguimos estabelecer a que se refere.
A grande dificuldade encontrada não é tanto em relação a sua organização sintática, mas ao contexto cultural. As palavras e sentenças são, apesar de todos os esforços, intraduzíveis.
A estrutura de uma das línguas parece ser – imprecisamente falando – fractal. As sentenças (ou sintagmas, agrupamentos sintáticos menores que uma sentença), parecem ser regularmente triádicos. O som das sílabas iniciais é sempre pronunciado com ênfase e, a cada três palavras, há uma pausa e vem outro grupo de três palavras (sempre com três sílabas cada uma). Dois grupos de três blocos formam – aparentemente – uma sentença e parece haver parágrafos (ou estrofes) a cada sete sentenças. Enquanto um oficiante continua pronunciando a primeira silaba, os demais continuam com as palavras seguintes. A cada nova palavra, um novo oficiante pronuncia a primeira sílaba da palavra seguinte. O efeito sonoro é bem impactante.
Não parece ser a língua do dia-a-dia de Nölt, mas todas as pessoas a utilizam nos rituais coletivos. Nas outras línguas (parece haver mais duas), não há indícios dessa regularidade ou reduplicação.
Não há cemitérios ou túmulos em Nölt. Mas também não há evidências de que cremem os corpos dos seus entes falecidos. Foram levantadas hipóteses sobre mumificação, mas também não parece ser o que acontece com os corpos depois da morte. Alguns chegaram a levantar a possibilidade de que os corpos fossem dissolvidos em ácidos ou desintegrados por partículas radioativas. Simplesmente, não sabemos o que ocorre.
Embora essa região esteja no que se pode chamar de equador (impróprio dizer isso, já que a rotação do Quarto Orbe é lateral para todo o Continente Central), é única que, possui uma aurora na porção do firmamento que está acima dela.
As cores dessa aurora variam do verde citrino a um violeta prateado. Análise espectográficas foram feitas a distância para se determinar a composição química, mas, surpreendentemente, não foram identificados elementos químicos. É como se não existissem na formação dessas estranhas e inusitadas auroras. Também não há atividade eletromagnética ou gravitacional que as justifique ou explique.
Sua população goza sempre de boa saúde (não há hospitais ou ambulatórios médicos em Nölt) e há uma forte suspeita que sequer haja médicos. Também não há cortes ou tribunais e, muito menos, prisões.
São muito serenos e são quase lentos em seus gestos. Praticam algo que mistura esporte, artes marciais (mas nunca se tocam nessas atividades) e uma dança. Nesses momentos, entoam sons que não são uma língua. Parecem vogais diferentes. Um linguista da região sul do Grande Continente aproximou-se certa vez e gravou com equipamento sensível a longas distâncias. Registrou vinte e oito vogais diferentes nessa espécie de cântico.
Alimentam-se de frutos e sementes e bebem somente água pura. Raspam o cabelo nas laterais da cabeça, deixando somente crescer um pouco no tampo, num corte que lembra o desenho de uma coroa. Na verdade, são dois tipos de coroas, o que parece permitir a distinção entre gêneros. Todos usam túnicas longas que cobrem todo o corpo. Tais roupas são usadas em sete cores diferentes e não se conseguiu saber o que cada uma designa.
Parecem ser felizes.
ContraPágina Quinta
Não há visões contrárias em relação ao povo de Nölt, uma vez que sequer suas línguas e seus costumes são compreensíveis. Outras sociedades ascéticas, em outras partes do Quarto Orbe tentam imitar seus costumes, mas há uma disparidade de interpretações.




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