Crônicas Impiedosas II
- Marco Villarta

- 16 de abr. de 2023
- 2 min de leitura
Conta-nos Heródoto que a princesa Io, filha de um rei grego de nome Inaco, foi raptada pelos fenícios. Os cretenses, ao que parece, por vingança, dirigem-se a Tiro, na Fenícia, e subtraem a seu rei a princesa Europa. Os gregos não se contentaram e raptaram a filha do rei da Cólquida, chamada Medéia. Talvez por achar que não teria maiores resultados, anos mais tarde, o troiano Páris, rapta Helena, rainha consorte e esposa de Menelau, soberano da cidade de Esparta. Custou a ruína da poderosa Tróia diante da aliança das cidades gregas. Todos esses relatos, Heródoto, o primeiro historiador helênico, atribui aos Persas. Por vezes, diz Heráclito ter ouvido dizer diferentes versões. Tivessem sido contemporâneos, Heródoto e Spinoza talvez fossem grandes adversários. Spinoza considera o degrau menos elevado do conhecimento o “ouvir dizer”. A arte da História, menos afeita a sua musa, Clio, nasce de uma mescla de acontecimentos, boatos e improváveis versões. Io, Europa, Medéia e Helena de Esparta (ou de Tróia) são sabidamente personagens mitológicos. Para Heródoto, como ele mesmo assume, é menos importante a veracidade do que é narrado, que a vivacidade do relato e o interesse do leitor. Não foi um cronista burocrático. Fazer história é também é mimetizar o evento, revestindo-o de um fazer, a poiésis, que mais se conforma a duas outras musas, da poesia épica e da poesia lírica (Calíope e Erato). Portanto, narrar é mythos, a própria invenção criativa, capaz de unir os cidadãos da Pólis. Nas entrelinhas do relato feito por Heródoto, impressiona, como sempre, o pouco apreço que se dedicava às mulheres. Mas... uma lição imperdoável de passar despercebida é a da justa medida. Helena não era princesa. Era rainha da belicosa Esparta. Filha de Zeus e da mortal, mas também rainha de Esparta, Leda. Irmã dos cultuadíssimos Cástor e Pólux. Páris ultrapassa essa tênue fronteira. Por fim, é das bocas bárbaras e inimigas (dos Persas) que saem esses relatos. Heródoto escolhe iniciar suas narrativas pelas versões de povos que os gregos desprezam. Porque não falar grego é não pensar. Nem o Tártaro, limbo dos limbos, comportaria tal subclasse de povo na visão helênica. O mais fascinante é que recontar os relatos de Heródoto não nos priva de fazer o mesmo artifício. Tratar do que se passa é tratar do que passa. A titânica Mnemósine nos desafiando com uma clepsidra cuja água é nosso fluxo de vida. Contar é dizer para alguém que queremos encantar ou aterrorizar, entre muitas outras propostas. Que a frieza das datas e a extensa lista dos nomes dos reinos e dos povos não nos iluda. O cronista, como o própria nome indicia, é filho do tempo, do cruel e destronado Cronos. E se a História – que quer dizer testemunho – de Heródoto ainda é capaz de nos fascinar, é porque somos surpreendidos – ainda – por uma maneira de contar que não nos teria ocorrido. Tal como no prólogo de Jorge Luís Borges no livro Fervor de Buenos Aires, o autor (nesse caso, um cronista-historiador) é alguém que se antecipa aos seus futuros leitores, sequestrando seus projetos de dizer.
Marco Villarta Lavras, 14 de abril de 2023.




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