Fótons
- Marco Villarta

- 8 de jun. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 22 de mai.
Enganam-se os que pensam que as fotos não envelhecem. E não falo aqui apenas do olhar de quem as observa. A luz as desbota, indiferente ao que está registrado nelas ou aos observadores de diferentes tempos que com elas interagem. Sempre me incomodou, de alguma maneira, a imobilidade das fotografias. Quando são nossas ou de quem conhecemos (no presente ou no passado desse verbo) as fotos acionam o memória, nos iludindo como se a lembrança fosse um resgate. Tantos já disseram que não é. Estou com eles. O acontecimento, qualquer um, é fugaz. Incapturável. Representação. No sentido de que é o possível de expressarmos a realidade, a maneira como a vemos, sentimos. Como ela participa de nossos contextos. Se os contextos mudam – e mudam – não há como os sentidos não serem outros. Recriamos o mundo. Nisso a fotografia nos dá um ar de deuses. Ou, à semelhança deles, nos investe– neste caso, verdadeiramente – de um poder adâmico do frescor de recriar o mundo inúmeras vezes, a cada nova lembrança. Talvez um teólogo herege, numa dessas religiões exóticas, em algum conto que Jorge Luís Borges escreveria, pudesse dizer que o pecado é nos esquecermos desse frescor e dessa novidade e acreditarmos que copiamos fielmente o momento vivido por meio da recordação. Até a etimologia da palavra ajudaria a desmascarar a mentira: recordar é fazer voltar ao coração. Se volta, é porque já não estava mais lá. E o quanto sabemos que cada volta é um diálogo com a despedida de quanto partimos. Representação. Porque é também nossa atuação no palco da existência. A persona que fomos ao vivermos um momento não é a mesma que o recorda. O papel é outro. A plateia também. Ainda que silenciosa e desconhecida. Ainda que somente dentro de cada um de nós. Disse que a imobilidade das fotos sempre me incomodou. Porque tento imaginar a cena em movimento. Os momentos antes e depois da captura. Hoje penso também se a luz fosse outra, se o ângulo escolhido tivesse sido... se outra máquina, se outro o ser humano por detrás do clique. Lembro-me (com o falseamento inevitável ao usar essa palavra) de dois filmes em que a fotografia recebe essa intervenção. O primeiro é Blow up, de Antonioni. Suspeitando ver, num espaço secundário de uma foto a evidência de um corpo e um indício de um assassinato, um fotógrafo vai revelando, ampliando e decupando uma foto. O confronto com a realidade (?) da ausência do corpo no jardim fotografado é uma desmontagem das crenças que possam ter restado ao espectador. O outro filme é Blade Runner, de Ridley Scott. Deckard, um caçador de androides vivido pelo ator Harrison Ford, ao investigar a casa de um dos replicantes rebeldes(León), toma uma foto e a coloca em um dispositivo (Esper Machine) que vasculha e exibe ângulos não mostrados na foto original. Brilhante citação que Scott faz de Antonioni, sagaz metáfora da inquietação do nosso olhar para com a imobilidade das cenas congeladas em uma fotografia.
Sabemos (e tememos) o que essa imobilidade nos evoca enquanto símbolo. Calamos sobre isso. Em palavras e na forma como rejeitamos o momento capturado que se desgasta e se apaga. Na fotografia, em um lapso de tempo que pode ultrapassar o da nossa existência. Mas há os temporários sobreviventes que podem enxergar as fotos dos túmulos desvanecidas e anônimas.
Mas tratei até agora das fotos impressas. As fotos digitais parecem diferentes. Acho que nem tanto. Talvez não seja a luz do sol que as devolva à soma de todas as cores. Um dano a um dispositivo de registro, como um pendrive, um cd ou um disco rígido bastam. Às fotos on line cabe uma dúvida: o que serão delas quando não estivermos mais aqui ? Não digo cada um de nós, num tempo intermitente de chegada e partida. Ou mesmo quando, por um qualquer de nossos excessos ou de nossas guerras, nossas fontes de energia entrarem em colapso e não conseguirmos manter a internet existindo. Restarão armazenadas em algum servidor remoto, inacessível ? Estarão fragmentadas em nuvens, inativas e sujeitas, pela não operação nem manutenção, a um desvanecimento igualmente silenciador.
Até um dia em que não houver mais espectadores que interpretem as imagens que registramos e os sentidos que elas possam ter. Nossa presunção já nos levou a gravarmos um disco metálico – com a pretensa durabilidade de 1 bilhão de anos terrestres - e enviarmos ao espaço, para um dia, eventualmente, outra espécie acha-lo e saber quem somos (fomos) nós. Pouco provável que que as informações gravadas façam sentido para ela. Não sabemos se a própria noção de sentido não é algo exclusivamente humano.
Mas as fotos, sejam estáticas, sejam ilusoriamente dispostas no movimento das imagens do cinema ou de outras artes hoje digitais, dizem muito sobre a maneira como estamos no mundo. Talvez a única coisa literal que percebamos nelas seja a nossa perplexidade diante de nós e de tudo.
Marco Villarta
Lavras, 02 de fevereiro de 2016.



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