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Fl´Órus e a dualidade


Página Segunda


Nos mares de metano do Hemisfério Sul do Quarto Orbe há numerosas ilhas. Na maioria delas, há pequenos povoados. Em cinco desses povoados, há galpões simples, sem paredes, com telhas brancas. Uma vez a cada 28 dias, nas horas que antecedem a mudança de mês da lua de Amur La, ocorrem reuniões em memória do pensamento de Fl´Órus.

Há diferentes visões sobre seus conceitos. O único consenso é que Fl´Órus questionou a dualidade. Para ele, não poderia haver vida e morte. Segundo seu pensamento, a dicotomia vida/morte seria uma maneira imprecisa e equivocada de se ver o problema. O seu contraargumento a essa classificação era que nada poderia garantir que se tratasse de um fenômeno com apenas dois aspectos e, ainda por cima, em relação de oposição. Fl´Órus defendia a ideia de que haveria um fenômeno mais complexo, multifacetado e expresso em relações que não se esgotariam na simples oposição, na base do que consideramos como existência.

Há muitos desdobramentos do pensamento de Fl´Órus. Enumero os mais impactantes

1) A antidoutrina. Tal perspectiva, baseando-se na premissa de que não há fenômenos exclusivamente em oposições binárias, afirma a impossibilidade de se estabelecer uma única verdade. Para os seguidores da antidoutrina, o par verdade/falsidade é uma grosseira simplificação e mutilação da realidade do mundo. Em vez de buscarem compreender o que o mundo é, em oposição ao que não é, os membros dessa corrente de pensamento buscam associar o que se conhece do mundo e o que não se conhece, o que se imagina, o que se sonha.

2) Os assófos. A partir da impossibilidade de distinções duais, negam a possibilidade matemática. Para eles, a noção de proporção, por exemplo, implicaria uma comparação entre grandezas ou valores. O estabelecimento de qualquer valor, grandeza ou quantidade, no entender deles, seria delimitar de maneira simplista um fenômeno mais amplo. Assim, dizer que 3 é maior que 2 significaria que 3 unidades seriam isoladas de seu todo e comparadas com outras 2, também separadas de seu todo. Os asófos eram considerados criminosos.

3) Os humildes. Grupo de andarilhos que percorre as ilhas, mendigando. Consideram-se incapazes de buscar o conhecimento e entendem que a virtude é não pensar na busca, mas viver de forma mais natural possível cada fenômeno do mundo.

4) ...

5) Nenhuma doutrina


ContraPágina Segunda


Alguns cronistas dizem ter entrevistado o próprio Fl´Órus, que teria aparecido em uma das reuniões, exatamente 400 luas depois de sua morte. Ele teria dito que o culto em sua homenagem havia sido forjado por lideranças dos povoados. Que havia tido uma vida simples, apenas se restringindo a tentar, com humildade, exercer as virtudes necessárias à boa convivência com os viventes e com as divindades.



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Marco Villarta

Lavras, 25 de junho de 2022

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Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

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