top of page

A cidade dos autômatos

Página Terceira

Relatam cronistas da I Era Glacial que, fugindo do frio mortal, alguns grupos tiveram por dádiva atingir o imenso deserto central. Com algum desconsolo perceberam que as inclemências do calor são tão fatais quanto as do frio e que haviam, na prática, trocado um deserto de espessa neve por um outro, de mutáveis e traiçoeiras dunas de areia.

Muitos pereceram, mas depois de 40 meses vagando, o grupo de sobreviventes encontrou ruínas de antiga cidade. Conseguiram abrigo em construções subterrâneas e sentiram-se abençoados com a descoberta de um rio que atravessava o subsolo dessas construções, de água límpida e pura.

Estabeleceram-se ali e depois de supridas as necessidades mais urgentes de abrigo, alimentação e proteção, começaram a explorar com mais atenção o sítio em que se encontravam.

Um menino, pastoreando lobos domesticados (que haviam encontrado por perto), desenterrou um pote de cerâmica. No seu interior havia um rolo duplo de pergaminho. Em sua inocência infantil, levou-o para servir de travesseiro.

Coube ao líder camerlengo, encarregado de inspecionar as necessidades das câmaras, cada uma com uma família instalada, intrigar-se com aquele achado.

Esclarecem os cronistas que aquele pequeno grupo inicial nunca voltou para as terras do Sul, de onde haviam saído. Cresceram e se multiplicaram e seus descendentes deram origem aos atuais povos do deserto.

Levou décadas para que conseguissem decifrar o pergaminho. Não sabemos, pelos relatos dos cronistas, em qual língua estavam escritos. O que importa, afinal, é terem descoberto a origem daquela cidade em ruínas.

O pergaminho era um diário do fundador da cidade. Compreenderam que se tratava de autômato que havia fugido da Nação dos Autômatos. Na província de Morg, na capital dessa nação, havia ocorrido um assassinato, evento incomum para os padrões daquela civilização. Os seres viventes, atordoados e enfurecidos, culparam esse autômato, de nome Edgan Raven, pelo crime.

Convencidos de sua inocência, um grupo de outros autômatos o seguiu em fuga, indo parar no deserto. Já que, como autômatos que eram, não necessitavam de alimento e água, resistiram às rudes condições.

Aos poucos, organizaram-se e construíram a magnífica cidade. Percebendo que estavam sós, sentiram a solidão da imortalidade e resolveram criar um povo que os glorificasse.

Em uma das páginas do seu diário, Edgan relata como criou os humanóides que vieram a habitar o deserto. Segundo o autômato, o calor escaldante do deserto fez com ele e seus companheiros começassem a sonhar, ao cair da noite.

Foi em um desses sonhos – nesse caso, coletivo – que começaram a criar pessoas. Segundo Edgan, tais pessoas não percebiam – e nem poderiam suspeitar – que eram simulacros, projeções das mentes dos autômatos.

Assim ocorreu, mas três gerações depois de sua criação, um grupo de cidadãos rebelados exigiu que eles pudessem tomar todas as decisões e não mais se submeter às vontades dos autômatos. O relato de Edgan não termina, mas a julgar por algumas pinturas em algumas câmaras, parece ter havido uma espécie de guerra civil, ocorrendo que os autômatos fossem destruídos pelos rebeldes.

Quarenta anos depois da primeira decifração, foi achada uma folha, colada na contracapa do diário de Edgan. Dizia assim:

“Vencemos. Mas algo de estranho acontece. A cada dia, parece que nossos corpos se desfazem como a areia do deserto que nos rodeia...”

Com letra trêmula, o pedaço de papel tinha um nome assinado: Flamínius Teseus Cartaphilus.

Nunca se soube algo além disso sobre os supostos construtores da cidade. Nas pinturas, em algumas paredes, a aparência dessas máquinas extraordinárias era de humanóides com cabeças de touros.

ContraPágina Terceira


Os povos do deserto dividem-se entre os que invocam a ascendência dos autômatos e os que reivindicam a ancestralidade dos que acharam o pergaminho. Há grande descrédito em relação a ambas dessas mitológicas origens.

Que tenha havido autômatos que sonham, isso é fato inegável. Improvável, porém, é que os povos que hoje povoam o Grande Deserto Central tenham encontrado tal pergaminho.


Marco Villarta

Lavras, 25 de junho de 2022.


Comentários


Marco Villarta

Professor universitário, pesquisador, poeta, ensaísta, escritor, tradutor. Doutor em Letras. Nascido em São José dos Campos/SP - Brasil. Curioso pela vida e pelas pessoas, pela arte e pelos sonhos.

Membro correspondente da Academia Jacarehyense de Letras

Copyright © 2025. Todos os Direitos Reservados

bottom of page