BORGES E O OUTRO EU
- Marco Villarta

- 16 de abr. de 2023
- 21 min de leitura
Atualizado: 16 de abr. de 2023
PEÇA TEATRAL
Marco Villarta
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Personagens
Jorge Luís Borges Menino
Jorge Luís Borges Jovem
Jorge Luís Borges meia-idade
Jorge Luís Borges velho
Menina amiga de Borges menino
Paracelso
Dançarinos de tango
Xamã
Filho do xamã
ATO PRIMEIRO
Cenário: ao fundo do palco, pano branco (4m x 2m). À esquerda do público, um banco de jardim. À direita do público, uma estante cheia de livros. Pouco à frente da estante, uma pequena mesa com toalha rendada, sobre a qual, bem ao centro, encontra-se uma bola de quartzo transparente.
Ato 1 - Cena 1
Borges Jovem sentado entre os espectadores. Apagam-se as luzes para o início da peça. Uma spotlight localiza Borges sentado. Ele se levanta elegantemente e vai caminhando em direção ao palco. A spot light esmaece um pouco e o acompanha. Uma câmera de frente para o público foca sua imagem e a projeta na tela ao fundo do palco.
Borges Jovem: A quem me ler... Se as páginas dos meus livros concedem algum verso feliz, me perdoe o leitor a descortesia de’eu, previamente, ter usurpado isso de você. Nossos nadas pouco diferem. É trivial e fortuita a circunstância de que seja você o leitor desses exercícios, e eu, seu redator[1].
Borges Jovem sobe pelo proscênio e se dirige à coxia, saindo de cena
Ato 1 - Cena 2
Na tela ao fundo projeta-se a imagem de um homem velho, sentado, com a imagem projetada em um espelho [FOTO 1] Acende-se uma spotlight no centro do palco.
Pelo lado direito do palco, vindo da coxia, entra um homem de meia-idade vestido com roupas de época [cinza claro] [FOTO 1]. Entra altivo, com a cabeça erguida e posta-se olhando para a tela, de costas para o público. Fica uns 30 segundos assim. Em seguida, vira-se parcialmente para o público (ficando com o corpo de lado e alterando a posição da cabeça, ora olhando para a tela, ora olhando para o público]
BORGES (meia-idade): [virado para a tela] Ao outro, a Borges, é a quem ocorrem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, acaso já mecanicamente para mirar o arco de uma antessala e as grades do portão; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma tríplice lista de professores ou em um dicionário biográfico. Me agradam os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha dessas preferências, porém de um modo vaidoso que as converte em atributos de um ator.
[olhando para o público] Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me permito viver para que Borges possa tramar sua literatura e essa literatura me justifica. Nada me custa confessar que ele tem conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não podem me salvar, talvez porque o bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, senão da linguagem e da tradição. Além do mais, eu estou destinado a me perder definitivamente e somente algum instante de mim poderá perseverar no outro.
[virado para a tela] Pouco a pouco vou lhe cedendo tudo, ainda que me conste seu perverso costume de falsear e engrandecer. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre, um tigre.
[olhando para o público] Eu hei de permanecer em Borges, não em mim mesmo (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou no laborioso dedilhado de um violão. Faz anos que eu tratei de me livrar dele e passei das mitologias da periferia aos jogos com o tempo e com o infinito, porém esses jogos agora são de Borges e terei que inventar outras coisas. Assim, minha vida é uma fuga e tudo perco e tudo é do esquecimento, ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página.
Borges de meia-idade sai de cena, em direção à coxia
Ato 1 - Cena 3
Na tela ao fundo projeta-se a imagem do Rio Ródano, em Genebra [FOTO 1]. Acende- se uma Spotlight no centro do palco.
Pelo lado esquerdo do palco, vindo da coxia, entra um senhor de meia-idade, vestido de terno completo, de cor escura [FOTO 3]. Tem o andar lento. Os olhos movimentam-se pouco, os lábios inferiores ligeiramente projetados para a frente. Caminha lentamente em direção ao banco e se assenta na ponta esquerda, ao lado do jovem. Apóia as duas mãos sobre a bengala e olha para frente.
[spotlight ainda no centro do palco]
Pelo lado direito do palco, vindo da coxia, entra um jovem vestido com roupas de época [cinza claro] [FOTO 2]. Traz um livro na mão esquerda (um dos volumes das Obras Completas de Jorge Luís Borges). Caminha altivamente (com alguma soberba) para o banco e senta-se na ponta direita. Cruza uma perna sobre a outra e começa a ler o livro.
[spotlight ainda no centro do palco]
Locução em off [Voz de Borges-velho]: Aconteceu no mês de fevereiro, ao norte de Boston, em Cambridge.
Acredito que foi pelas dez da manhã. Eu estava recostado em um banco, defronte ao rio Charles.[..]. A água cinzenta carregava grandes pedaços de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse no tempo. A milenar imagem de Heráclito. [..]. Não havia ninguém à vista.
Senti, de repente, a impressão [...] de já ter vivido aquele momento. Na outra ponta de meu banco, alguém se havia sentado.
Teria preferido estar só, mas não quis levantar em seguida, para não me mostrar descortês. O outro se havia posto a assobiar. Foi então que ocorreu a primeira das muitas inquietações dessa manhã. O que assobiava, o que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o estilo mestiço de La Tapera de Elias Regules. Logo vieram as palavras. A voz não era a de Álvaro, mas queria se parecer com a de Álvaro. Reconheci-a com horror.
Borges de meia-idade: __ Me perdoe a intromissão, mas o senhor é uruguaio ou argentino?
Borges Jovem: __ Argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra
Silêncio (30 segundos)
Borges de meia-idade: — No número dezessete da Malagnou, em frente à igreja russa?
Borges Jovem meneia a cabeça afirmativamente
Borges de meia-idade [resolutamente, com voz solene]: — Neste caso o senhor se chama Jorge Luis Borges. Eu também sou Jorge Luis Borges. Estamos em 1969, na cidade de Cambridge.
Borges Jovem sorri ironicamente: — Não... Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do Ródano. O estranho é que nos parecemos, mas o senhor é muito mais velho, com a cabeça grisalha.
Borges de meia-idade: — Posso te provar que não minto. Vou te dizer coisas que um desconhecido não pode saber. [Continua movendo os lábios por alguns segundos, sugerindo que relata coisas ao jovem]
Borges Jovem: — Não — respondeu. -Essas provas não provam nada. Se eu estou sonhando, é natural que eu saiba o que sei. Seu catálogo prolixo é totalmente inútil.
Borges de meia-idade: — Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um de nós dois tem que pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não. Nossa evidente obrigação, enquanto isto, é aceitar o sonho, como aceitamos o universo e termos sido engendrados e olharmos com os olhos e respirarmos. [com voz trêmula, indecisa]: — E se o sonho durasse?
Silêncio – 30 segundos
Borges de meia-idade — Meu sonho já durou setenta anos. Afinal de contas, ao rememorar, não há pessoa que não se encontre consigo mesma. É o que nos está acontecendo agora, só que somos dois. Não queres saber alguma coisa de meu passado, que é o futuro que te espera?
Borges Jovem balança a cabeça afirmativamente
Borges de meia-idade move os lábios sugerindo estar contando coisas para o jovem.
Borges Jovem: __ E sobre o senhor?
Borges de meia-idade: — Não sei o número de livros que você escreverá, mas sei que são muitos. Você vai escrever poesias que lhe darão uma satisfação não partilhada e contos de índole fantástica. Vai dar aulas como seu pai e como tantos outros de nosso sangue.
Borges Jovem desatento, olhando para o nada
Borges de meia-idade: __ Vejo que carrega um livro...
Borges Jovem: __ Os demônios de Fiódor Dâstaiêvski
Borges de meia-idade: __ Já o esqueci. Como é?
Borges Jovem [com solenidade, mas dizendo lentamente] — O mestre russo penetrou mais que ninguém nos labirintos da alma eslava.
Borges de meia-idade: __ E você está atualmente escrevendo alguma coisa?
Borges Jovem: __ Estou preparando um livro de versos. Ainda não tenho certeza do título: Os hinos vermelhos, ou Os ritmos vermelhos. Pretendo que os versos contem a fraternidade entre todos os homens. O poeta de nosso tempo não pode voltar as costas à sua época.
Borges de meia-idade: [cético] __ Você se sente, realmente, irmão de todos. Por exemplo, de todos os empresários de pompas fúnebres, de todos os carteiros, de todos os escafandristas, de todos os que vivem nas casas de números pares, de todos os afônicos?
Borges Jovem: __ Meu livro se referia à grande massa dos oprimidos e dos párias.
Borges de meia-idade: [com voz de incredulidade] — Sua massa de oprimidos e párias não é mais que uma abstração. Só os indivíduos existem, se é que existe alguém. O homem de ontem não é o homem de hoje, sentenciou algum grego. Nós dois, neste banco de Genebra ou Cambridge, somos talvez a prova.
Borges Jovem: — Se o senhor foi eu, como explicar que tenha esquecido seu encontro com um senhor de idade que, em 1918, lhe disse que ele também era Borges?
Borges de meia-idade: [com voz titubeante, expressando incedisão e surpresa] — Talvez o acontecimento tenha sido tão estranho que eu tenha tratado de me esquecer disso.
Borges Jovem: [replicando rapidamente] — Como anda sua memória?
Borges de meia-idade: [altivo] — Costuma parecer-se com o esquecimento, mas ainda encontra o que lhe pedem. Estou estudando anglo-saxão e não sou o último da classe.
— Eu posso te provar imediatamente — disse-lhe — que não estás sonhando comigo. Ouve bem este verso, que nunca leste, que eu me lembre. [continua movendo os lábios. O jovem olha para ele com muita atenção e com expressão de grande surpresa, quase de assombro]
Borges de meia-idade [falando repentinamente] __ Se isso não é suficiente, podemos nos utilizar de uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma flor. Ao despertar, ali está a flor. Você tem algum dinheiro?
Borges Jovem: — Tenho uns vinte francos.
Borges de meia-idade : __ Por favor, então, me dê uma de suas moedas.
Borges Jovem tira uma pequena moeda do bolso e entrega a Borges de meia-idade. Borges de meia-idade dá a Borges Jovem uma moeda de 1 dólar.
Borges Jovem: — Andrew Jackson na face e Estátua da Liberdade no verso... [gritando, muito surpreso] Não pode ser!!! A data é de 2008!!!
Borges Jovem: [surpreso, gaguejando] — Tudo isto é um milagre e o milagroso dá medo. Os que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro terão ficado horrorizados.
Borges de meia-idade: [sussurrando, como para si mesmo] __ Não mudamos nada. Sempre as referências livrescas
Borges Jovem lança a moeda ao rio. Borges de meia-idade faz o mesmo com a que Borges Jovem havia lhe dado.
Borges de meia-idade: __O sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Podemos nos ver amanhã, nesse mesmo banco que está em dois tempos e dois lugares.
Borges Jovem: [concordando com a cabeça] __ Já é tarde [sem olhar para o relógio]
Borges de meia-idade: __ Sim. Logo virão me buscar.
Borges Jovem: __ Buscar?
Borges de meia-idade: [balança a cabeça, lentamente, concordando] __ Quando você alcançar a minha idade, terá perdido a visão quase por completo. Verá a cor amarela, sombras e luzes. Não se preocupe. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão.
Spotlight se apaga. Cada um dos personagens sai de cena, em direção à coxia, pelo mesmo lado que entrou. Enquanto isso, locução em off:
Borges velho: Nos despedimos sem termos nos tocado. No dia seguinte, não fui. O outro também certamente não foi. Meditei muito sobe esse encontro, que não contei a ninguém. Creio ter descoberto a chave. O encontro foi real, mas o outro conversou comigo em um sonho e foi assim que pude me esquecer. Eu conversei com ele na vigília e a lembrança ainda me atormenta.
O outro me sonhou, mas não me sonhou rigorosamente. Sonhou, agora o entendo, a impossível data na moeda de 1 dólar.
Fim do 1º Ato
ATO SEGUNDO
Ato 2 - Cena 1
Luz amarela se acende progressivamente sobre o palco
Ao fundo, projeção de um laboratório de alquimista. Um dos spotlights projeta luz vermelha tremeluzindo, imitando uma luminosidade de uma fogueira (que não se faz visível)
No centro do palco, duas cadeiras rústicas de madeira, uma mesa de madeira e, sobre um suporte ou pilar, uma pequena churrasqueira acesa em forma de grelha, simulando um pequeno incinerador
Começa a aparecer a figura de um homem calvo, de costas, sentado em uma cadeira, no centro do palco. Está vestido com calças compridas ligeiramente bufantes, de tecido grosso, de cor grená. Camisa de linho de mangas compridas em tom ocre claro ou areia, com colete de brim também em cor grená.
Paracelso: [voz em off]: Ilimitado Princípio e Fim de todas as coisas, todo praticante da Grande Obra sonha por acolher um discípulo...
Paracelso levanta-se, ainda arqueado, e olha em direção ao público, com olhar distante e vago, como que procurando alguém. Da coxia sai Borges Jovem [vestido com um traje monástico cinza, em tecido rústico [juta ou semelhante] e posta-se um pouco atrás de Paracelso. Bate palmas. Paracelso vira-se, como que acordando de um sono profundo.
Acena para Borges Jovem entrar. Os dois se sentam, cada um em uma das cadeiras. Ambos com aparência cansada.
Paracelso: [com ar arrogante] conheço fisionomias do Ocidente e do Oriente, mas desconheço a sua... quem é o senhor e o que deseja de mim?
Borges Jovem: meu nome não importa. Três dias e três noites caminhei para chegar até aqui. Quero ser seu discípulo. Trouxe tudo que eu tenho. Tirou de dentro do hábito de monge um saco de moedas. Abriu-o e espalhou, com a mão direita, uma grande quantidade de moedas de ouro sobre a mesa.
Paracelso: [olha displicentemente para as moedas sobre a mesa]. Dá a Borges Jovem uma caixa de fósforos longos para acender uma vela no canto da mesa. Volta-se e percebe, na mão esquerda de Borges Jovem, uma rosa amarela [de papel crepon].
Paracelso: o senhor acredita que eu seja capaz de elaborar a pedra para transformar todas as coisas em ouro e é ouro que me traz. Não é ouro que procuro, e se é esse ouro que você busca, não será nunca meu discípulo.
Borges Jovem: o ouro não me importa. Essas moedas não são mais que a minha vontade de trabalho. Quero que o senhor me ensine a Arte. Quero percorrer o caminho que conduz à Pedra.
Paracelso [dizendo lentamente] O caminho é a Pedra. Se você não entende essas palavras, não entendeu ainda o caminho. Cada passo que dará será a própria meta.
Borges Jovem: [receoso] Mas há uma meta, não há?
Paracelso [com um sorriso cínico] Meus inimigos dizem que sou um impostor. Talvez... Só sei que HÁ um caminho.
Borges Jovem: [de cabeça baixa, aos poucos a levanta insolentemente, olhando diretamente nos olhos de Paracelso] Estou pronto a percorrer esse caminho com o senhor, mesmo que tenhamos que caminhar por muitos anos. Deixe-me cruzar o deserto. Deixe-me divisar até os confins da Terra Prometida, mesmo que os astros não me deixem pisar seu solo. Porém... [hesita por um momento], quero uma prova antes de empreender o Caminho.
Paracelso: Quando?
Borges Jovem: agora mesmo [levanta a rosa amarela diante de Paracelso]. Há a lenda de que o senhor pode queimar uma rosa e fazê-la ressurgir das cinzas, por obra de sua arte. Me deixe ser testemunha desse prodígio. Só peço isso, e darei depois minha vida inteira.
Paracelso: Você é muito crédulo. Não há necessidade da credulidade. Exijo a fé.
Borges Jovem: Precisamente porque não sou crédulo é que quero ver com meus olhos a aniquilação e a ressurreição da rosa.
Paracelso pega a rosa da mão de Borges Jovem. Alterna as mãos, deslocando-a de um lado para outro, enquanto diz: Você é crédulo. Diz que sou capaz de destruir essa rosa.
Borges Jovem: Ninguém é incapaz de destruí-la
Paracelso: Você está enganado. Crê, por acaso, que se pode devolver algo ao Nada? Crê que, no Paraíso, o primeiro Adão pôde ter destruído uma única flor ou um sequer uma fina folha de relva do Jardim?
Borges Jovem: [dizendo secamente] Não estamos no Paraíso. Aqui debaixo da Lua, tudo é mortal. [E, desafiadoramente] Uma rosa pode ser queimada...
Paracelso: Postando-se de pé, olhando para a plateia. Em que outro lugar nós estamos? Você crê que a divindade pode criar um lugar que não seja o Paraíso? Crê, ainda, que a Queda é outra coisa que ignorar que estamos no Paraíso?
[Dá meia volta e senta-se diante da mesa. Abaixa a cabeça e deixa os olhos entrecerrados] Nos séculos que ainda virão, um poeta, originário de poderosa ilha, talvez me acuse de insolente, por afirmar que eu me vangloriava de trazer as formas de uma rosa ou de uma violeta das cinzas. Dirá, quem sabe, também da impossível pretensão de retroceder os pés antes das marcas no chão, das presas perseguidas na caçada, das ciências alquímicas, já com outro nome, buscando as origens todas das coisas. Do eterno retorno das fênix solitárias do palimpsestos das nossas mentes, “camadas eternas de ideias, imagens, sentimentos que caem sobre o cérebro suavemente como uma luz. Cada suceder parece enterrar tudo o que aconteceu antes.” E, na realidade, nenhum desses momentos, de sonhos dentro de sonhos, jamais foi extinto.
Paracelso levanta-se e olha para as chamas que sobem do incinerador. Diz, pensativo: Ainda há fogo na lareira. Se você jogasse esta rosa nas brasas, acreditaria que ela foi consumida e que as cinzas são verdadeiras. Digo para você que a rosa é eterna e somente sua aparência pode se alterar. Me bastaria uma única palavra para que você a visse de novo.
Borges Jovem: [entre surpreso e decepcionado] Uma palavra? O atanor está apagado e os alambiques estão cheios de poeira. O que o senhor faria para que ela ressurgisse.
Paracelso [falando lentamente e com profunda tristeza] O atanor está apagado e os alambiques estão cheios de poeira. Neste ponto de minha larga jornada uso outros instrumentos.
Borges Jovem: Não me atrevo a perguntar quais são...
Paracelso: Me refiro ao que usou a divindade para criar os céus e a terra e o invisível Paraíso em que estamos, e que a arrogância original nos oculta. Falo da Palavra que nos ensina a ciência da Kaballah.
Borges Jovem: Peço ao senhor a graça de me mostrar o desaparecimento e a aparição da Rosa. Não me importa se o senhor opera com altares ou com o Verbo.
Paracelso: [após prolongada pausa, suspira e diz] Se eu o fizesse, você diria que a magia seria enganar seus olhos. Deixa, então, em paz, a Rosa. Além do quê, quem é você para entrar na casa de um mestre e exigir um prodígio. O que fez você para merecer esse dom?
Borges Jovem: Sei que não fiz nada para merecer isso. Peço ao senhor em nome dos muitos anos vou dedicar aos estudos sob seus cuidados que o senhor me deixe ver a cinza e depois a Rosa. Não vou lhe pedir nada mais. Crerei no testemunho dos meus olhos. [Pega bruscamente a rosa de cima da mesa e a lança ás chamas do incinerador]
Paracelso, calmamente, espera que a rosa seja totalmente incinerada. Estende a mão direita por debaixo das chamas e recolhe um punhado de cinzas, que mantém na palma da mão, para a qual olha distraidamente. Diz: Minha fama corrente aqui na Basileia é que sou um charlatão. Talvez isso seja verdade. Aqui estão as cinzas do que foi a Rosa e a que não vão retornar.
Borges Jovem [com expressão de desalento e de vergonha]: A maneira como agi é imperdoável. Me faltou a fé, que o Senhor exigia dos que creem. Deixe que eu siga vendo as cinzas. Voltarei quando minha fé for mais forte e serei seu discípulo, e, ao final do Caminho, verei a Rosa. [Recolhe as moedas de cima da mesa, abaixa a cabeça e dirige-se para a saída, pela esquerda, em direção à coxia. Paracelso o acompanha. Volta, senta-se, demonstrando cansaço, sempre mantendo o punhado de cinzas na mão direita. Sussurra algumas palavras e, na tela do fundo, vai aparecendo, em fade in, uma rosa vermelha. Os spotlights do palco se apagam e Paracelso sai de cena, indo em direção à coxia, pelo lado direito. Fade out da tela do fundo, em sépia.]
Final da cena 1
Ato 2 - Cena 2
Spotlights do palco se acendem com um tom de sépia esverdeado. Na tela do fundo, a projeção de um espelho, com a imagem de uma menina
No centro do palco, uma menina com camisola branca até os pés
Voz em off, de Borges de meia-idade
Em 1927, conheci uma menina sombria: primeiro pelo telefone (porque Júlia começou sendo uma voz sem nome e sem rosto); depois, em uma esquina ao entardecer. Tinha os olhos assustados e grandes, cabelos pretos e lisos e corpo magro. Era neta e bisneta de federais, como eu de unitários e essa antiga discórdia nos nossos sangues era para nós dois um vínculo, uma possessão melhor de nossa pátria. Vivia com os seus parentes em um arruinado casarão muito alto, no ressentimento e na insipidez da decência pobre. Á tarde, algumas poucas vezes à noite, saíamos para caminhar pelo seu bairro, que era o de Balvanera. Contornávamos o paredão da ferrovia; passando por Sarmiento chegamos uma vez até as áreas desflorestadas do Parque Centenário. Entre nós nunca houve amor, nem ficção de amor: eu adivinhava nela “uma intensidade que era bastante estranha ao erótico e chegava a ter medo dela: é comum abordar as mulheres para ficar confidenciar a elas momentos verdadeiros ou apócrifos do passado pueril. Eu devo ter contado a ela uma vez sobre os espelhos e relatei, assim, em 1928, uma alucinação que iria florescer em 1931. Agora, acabo de saber que ela enlouqueceu e que em seu dormitório os espelhos estão velados pois neles vê o meu reflexo, usurpando o seu. Aí treme e diz que eu a estou perseguindo com magia. Servidão infeliz a do meu rosto, a de um dos meus rostos mais antigos. Esse odioso destino de minhas feições que me faz odioso também. Porém já não me importa mais...
Imagem da menina no espelho na tela de fundo começa a esmaecer em fade out, surgindo em fade in, sucessivamente, as faces de Borges Menino, Borges Jovem, Borges de Meia-Idade e Borges Velho.
Entra no palco, saindo da coxia, Borges Menino, vestido de dançarino de tango.
Fim da Cena 2
Ato 2 - Cena 3
Spotlights do palco passam para o vermelho.
Na tela do fundo, projeção de dois dançarinos de tango, cada um com um punhal na mão.
Borges Menino toma a menina em posição de dançar tango.
De maneira sincronizada o casal no palco e a projeção na tela começam a dançar (na tela coreografia filmada com movimentos de luta de punhais, estilizada)
Voz feminina (Romina Balestrino) canta a milonga “Alguém diz ao tango”
Tango, tenho visto bailar
Contra um sol que se apaga
Por quem eram capazes
De outro baile, o da adaga
Tango do que, amaldiçoado,
Com menos água que barro,
Tango assoviado ao passar
Por entre o gancho de um carro
Despreocupado e folgado,
Sempre me olhava de frente.
Tango que foi a alegria
De ser homem e ser valente.
Tango que foi tão feliz,
Tal como eu tenho sido
Como conta o que recordo;
E o que recordo... esquecido.
Desd’ esse ontem, quantas coisas
aos dois já se tem passado
as partidas e o pesar
de amar e não ser amado
eu vou morrer e você seguirá
amparando: a vida padece
Buenos Aires não lhe esquece
Tango, você que foi e será.
Ao final da milonga, o casal de crianças fica imóvel no palco. Spotlights passam de vermelho para laranja, para amarelo e esmaecem, apagando-se totalmente. Na tela do fundo, as figuras dos homens vão esmaecendo, ficando suas sombras e a imagem dos dois punhais. Fade out na tela do fundo, em amarelo sépia.
Fim do Ato Segundo
ATO TERCEIRO
Ato 3 - Cena 1
Tela do fundo projeto um círculo de menires, como em Stonehenge. Spotlights em amarelo
Entra um xamã, sem camisa, com uma tanga de tecido imitando couro de onça.
Está com um atabaque. Posta-se no meio do palco e se senta. Abaixa a cabeça e se mostra concentrado. Deita-se como se estivesse dormindo. Na tela do fundo, como que no centro dos menires, aparece em fade in, dois pés descalços, da cor de barro vermelho.
O xamã desperta e dá um toque no atabaque
Volta a dormir e, na tela de fundo, aparecem duas pernas por sobre os pés.
O xamã desperta e dá dois toques no atabaque
Volta a dormir e, na tela de fundo, aparece o tronco por sobre as pernas e os pés
O xamã desperta e dá três toques no atabaque
Volta a dormir e, na tela de fundo, aparecem os braços encaixando-se no restante do corpo
O xamã desperta e dá quatro toques no atabaque
Volta a dormir e, na tela de fundo, aparece a cabeça, completando o corpo
O xamã desperta, olha para o atabaque e não dá nenhum toque.
Locução em off de Borges Velho [na tela do fundo, um homem, com cor de barro vermelho e tanga branca manchada de barro anda por campinas. O xamã olha para a tela de fundo, acompanhando a trajetória do homem de barro]
Nos crepúsculos da tarde e na alvorada da manhã, prostrava-se diante das figuras de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal executava idênticos ritos, em outras ruínas circulares, águas abaixo; [...] Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de sua alma. O propósito de sua vida estava realizado. [xamã faz expressão de êxtase]
As lendas de que um homem mágico, num circular templo das terras do Norte, podia pisar as chamas de fogo e não se queimar chegaram ao seu ouvido. O mago recordou-se [expressão de surpresa e susto] das palavras do deus. Recordou que de todas as criaturas que compõem o mundo, o fogo era a única que sabia que seu filho era um fantasma. Temeu, com terror, que seu filho meditasse sobre esse privilégio anormal e descobrisse, de algum modo, a condição de mero simulacro. Que humilhação irreparável ser apenas sonho de outro ser humano, de alguém que o havia sonhado, pedacinho por pedacinho, em mil e uma noite secretas.
Spotlights projetam luz vermelha sobre o palco
Xamã levanta-se assustado. Na tela do fundo, projeta-se o xamã, envolto por menires e por chamas de fogo.
Empina o peito, levanta um pouco a cabeça e entoa o seguinte poema:
No fundo do sonho estão os sonhos. Cada
Noite quero me perder nas águas obscuras
Que me lavam do dia, mas debaixo dessas puras
Águas que nos concedem o penúltimo Nada
na hora gris a obscena maravilha late em apelo
Pode ser um espelho com meu rosto distinto
Pode ser o crescente cárcere de um labirinto
Pode ser um jardim. Sempre terrível pesadelo
Seu horror não é desse mundo. Algo que não se nomeia
Me alcança dos ontens de mito e de neblina;
A imagem detestada perdura na retina
E profana a vigília como profanou o que sombreia.
Por que brota de mim quando meu corpo repousa
E a alma se queda sozinha, esta insensata rosa?
Apagam-se as spotlights. Xamã sai em direção à coxia. Na tela do fundo, aparece sua imagem no centro do círculo de menires, sendo tomado pelas labaredas do incêndio, sem que seja queimado por elas.
Locução em off de Borges Velho: Ser sonho dentro do sonho, e nada mais. É tudo o que somos e parecemos. Uma aparência sonhada por outro?
Tela do fundo com a projeção em fade out
Fim da cena 1
Ato 3 - Cena 2
Na tela, ao fundo, projeção do quadro “A persistência da memória – ou os relógios moles” de Salvador Dali
Borges de meia-idade, com calça social, sapatos bicolores, camisa social de manga comprida, branca com listas verticais cinzas ou ocres, de suspensório, sentado numa cadeira com os espaldar ao contrário, de frente para o público. Spotlight amarelo sépia sobre ele. Diz o poema abaixo[2]:
Penso (já pensei isso antes)
Que neste inverno estão os antigos invernos
Dos que deixaram escrito
Que o caminho está prefixado
E que já somos do Amor e do Fogo
A neve e a manhã e os muros vermelhos
Podem ser formas de uma felicidade
Mas eu venho de outras cidades
Onde as cores são pálidas
E, nas que uma mulher, ao cair da tarde,
Regará as plantas do pátio.
Levanto os olhos e os perco no ubíquo azul
Mais adiante estão as árvores de Longfellow
E o adormecido rio incessante
Ninguém nas ruas, porém não é um domingo.
Não é segunda,
O dia que nos apresenta a ilusão de começar.
Não é terça,
O dia que preside o planeta vermelho.
Não é quarta,
O dia daquele deus dos labirintos
Que, no Norte, foi Odin.
Não é quinta,
O dia que já se resigna ao domingo.
Não é sexta,
O dia regido pela divindade que, nas selvas,
Entrelaça os corpos dos amantes.
Não é sábado.
Não está no sucessivo tempo
A não ser nos reinos espectrais da memória.
Assim como nos sonhos
Por detrás de uma porta não há nada.
Nem sequer o vazio.
Assim como nos sonhos,
Por detrás do rosto que nos encara não há ninguém
Anverso sem reverso,
Moeda de uma cara só, as coisas
Essas misérias são os bens
Que o precipitado tempo nos deixa
Somos nossa memória.
Somos esse quimérico museu de formas inconstantes,
Esse amontoado de espelhos rotos.
Borges de meia-idade levanta-se da cadeira, pega o paletó jogado sobre o assento de outra cadeira e o joga sobre as costas, segurando-o sobre a ponta dos dedos de uma mão. Sai de cena em direção à coxia, enquanto esmaece o spotlight.
Ato 3 - Cena 3
Ao fundo, na tela, projeção da cena inicial de O Sacrifício, de Andrei Tarkovski [FOTO 12]
Spotlight focada na saída esquerda da coxia. Lentamente, sai Borges velho, com um bengala que dá pancadas ritmadas no palco, à medida que ele dá alguns poucos passos. Do lado direito da coxia, sai Borges menino, que se posta à frente de Borges velho. Este apóia sua mão direita sobre o ombro esquerdo de Borges Menino, que vai caminhando e conduzindo Borges velho, descendo o palco e caminhando pelo corredor por entre as cadeiras dos espectadores. Spotlight os acompanha.
Borges menino: Toda novidade não é senão esquecimento.
Borges velho [em locução em off, gravada]:[caminhando, amparado por Borges menino, batendo a bengala no chão, ao final de cada sílaba tônica ao final de cada verso.
A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
Pode ser o tempo de nossa felicidade
O animal está morto ou quase morto.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
Que são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
Que antes se desgarrava em subúrbios
Desde a planura incessante,
Voltou a ser a Recoleta, o Retiro,
As borrosas ruas do Once
E as precárias casas velhas
Que ainda chamamos El Sur.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou seus olhos para pensar
O tempo tem sido meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
Flui por um manso declive
E se parece com a eternidade.
Meus amigos não têm face,
As mulheres são o que foram já faz tantos anos,
As esquinas podem ser outras,
Não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria me aterrorizar,
Mas é uma doçura, um regresso.
Das gerações dos textos que há na terra
Só terei lido uns poucos,
Os que sigo lendo na memória,
Lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte,
Convergem os caminhos que têm me trazido
Ao meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
Mulheres e homens, agonias, ressurreições,
Dias e noites
Entressonhos e sonhos,
Cada ínfimo instante do ontem
E dos ontens do mundo,
A firma espada do dinamarquês e a lua do persa,
Os atos dos mortos,
O compartido amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego ao meu centro,
À minha álgebra e minha chave,
A meu espelho.
Logo saberei quem sou.
Fundo do palco com o quadro A reprodução impossível, de René Magritte, 1937 [FOTO 13] Locução em off, com as vozes de todos os Borges in ritardo:
Quando se aproxima o fim, já não restam imagens da recordação; só restam palavras. Palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros...
Spotlight se apaga. Tela do fundo apresenta os créditos. Música Lovely is the Rose, de Bill Douglas. Ao fim da passagem dos créditos, tela do fundo fica em Fade out, em negro e música vai diminuindo.
FIM DA PEÇA


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